quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

o degradante e seus incômodos

Fora uma daquelas manhãs imortalizadas não só pela intensidade da ressaca e pelo gosto de pneu queimado tomando o paladar, mas também pelo sorrisão do camarada ao meu lado. Caralho, que merda, eu pensei, ou disse, não me recordo, mas também não faz diferença, o fato é que ele estava ali como veio ao mundo e tagarelando logo cedo na minha orelha enquanto eu perguntava a Deus porque é que eu era assim. A religião sempre dá um jeito de se infiltrar nestas horas de decepção matinal quando estamos acompanhados de uma inhaca. A situação se torna ainda mais crítica quando você se dá conta de que a inhaca fala. Esta, em especial, falava como ninguém, falaria até mesmo se fosse uma porta. Cala a boca, imbecil, mas isto sei que eu não disse, embora esta poesia ímpar tenha me subido à goela com a veemência de um vômito. Engoli a grosseria como raramente faço, respirei fundo e me preparei para uma manhã daquelas. Virgem Maria, lá vamos nós de novo. Eu, minha consciência pesada, a senhora, seu filho Jesus, os 12 apóstolos e os santos, todo mundo tendo que ouvir muitas preces requerendo paciência, pedindo perdão e jurando que se aquele troço evaporar nunca mais vou beber, fumar, comer chocolate e ser dominada pela preguiça.
Meu escambo com o alto escalão celestial deve ter falhado porque o troço nunca evaporou. Pelo contrário, continuava ali, aparentando ainda mais cheio de vida do que ao meu primeiro vislumbre matutino e o que eu gostaria imensamente, na real, é que ele estivesse morto e sepultado. Não me lembrava de que ele fosse tão, digamos assim, alegre, irritantemente alegre, contudo, a verdade é que eu não me recordo nem de como o conheci, restando, por conseguinte, a hipótese de que uma borboleta tenha batido as asas no meio do Atlântico gerando um tufão, uma coisa levou a outra, a teoria do caos avacalhou comigo e definiu esta circunstância desastrosa. Portanto, fica o alerta de que esta é a consequência para quem bebe, acha que é o Amaury Júnior, socializa com tudo e todos que passam pelo caminho e são pegos no percalço pela brisa final da batida de asas da mariposa. Mas isto é velha moral de história e logo se desvaneceu quando comecei a me questionar sobre o tipo de gente que acorda muitíssimo disposta a discutir paradigmas de boteco que só impressionam uma mulher analfabeta, ele não podia valer muita coisa. E a ladainha parecia não ter fim, se esta morrinha disser mais alguma coisa, não sei do que sou capaz, vou ter que dar um murro, pensei. 
É impossível determinar quando me tornei bestial com o sexo oposto e as implicações de me relacionar com ele, embora eu tenha justificativas de sobra e as razões sejam inumeráveis, a questão é que tudo me é aparentemente divertido num primeiro momento e, no entanto, o segundo momento, de estreitar vínculos e estas coisas todas, se tornou uma das partes mais desgostosas deste contato. Percebendo este aspecto obscuro em mim, a realidade de como as coisas são fora das telas do cinema nos conduz à conclusão de que somos muito feios por dentro e isto não constitui nenhuma novidade, nós não passamos de uma espécie que tem a alma pútedra e...
Minha auto análise que teria se estendido encontrou, primeiramente, uma sílaba no meio do seu caminho, depois outra sílaba e mais outra e as sílabas formaram uma palavra e outra palavra e muitas palavras, então não houve meios para dar prosseguimento ao meu raciocínio porque o infeliz não fechava a matraca, interrompendo abruptamente qualquer idéia que pudesse vir a florescer na forma de algo interessante. Resolvi que precisaria de uma quantia exorbitante de cigarro e café para conseguir suportar a homilia até que pudesse despachá-lo de volta para o inferno, de onde nunca deveria ter saído. Vou coar um café, aceita?, aceito, mas aqui você viu blá blá blá blá blá blá blá blá. E o café não saía porque eu não conseguia deixar o cômodo já que sempre lhe ocorria algum assunto que puxava outro, pode crer, então vou lá coar o café, mas aqui, Sarah, blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá. Meu bem, já te disseram que você é insuportável? Já lhe ocorreu que talvez você seja inconveniente e devesse rachar fora assim que a malícia da oportunidade aparece? Eu havia arrumado uma bela de uma sarna e cada palavra dita repercutia em mim como uma coceira enervante.
Sentia-me desapontada não só pela companhia que não tinha o mínimo de bom senso, mas também por quem aquela coisa se revelou ser e por quem eu me revelei ser quando estava perto da coisa, algo que se pode definir entre o comportamento de um animal arisco, feroz e retardado e de alguém com uma alma exasperada na totalidade dimensional que a cólera abrange. Estava prestes a deixar meus instintos violentos e grosseiros virem à tona quando ele, finalmente, resolveu se meter para dentro daquela bermuda florida, mal consegui acreditar, o sujeito estava se sentindo tão à vontade que cheguei a cogitar que fosse ficar pelado para sempre, tive vontade de esganá-lo e abraçá-lo ao mesmo tempo por felicidade, acreditando ingenuamente que ele tivera sido iluminado pela sensatez e percebido que já havia passado da hora de sumir. Ledo engano.
Quando você se depara com um desconhecido ao seu lado logo cedo, é esse o tipo de pensamento que rebimboca de lá pra cá na cabeça, parecendo uma bolinha de pinball desgovernada martelando impiedosamente todos os cantos do cérebro promovendo estímulos que acarretam sensações que, francamente, odeio sentir. Enquanto ele discorria sobre uma besteira que nem me lembro, eu tentava ordenar os fatos e entender o que diabos havia acontecido na noite anterior para descortinar o episódio de embriaguez que me conduzira a este final.
Dali da porta do quarto, aonde eu havia me estacionado a uma distância segura livre de qualquer contato físico que eu não queria ter de modo algum, fitava-o com desdém reparando nos seus gestos, debochando interiormente da sua expressão facial que adquirira um tom patético de conformidade com a minha repulsa escrachada, notei que seus lábios eram agora hesitantes, quase trêmulos, e não exprimiam a determinação de quando resolveu que iria falar compulsivamente. A barreira emocional que impus era evidente e tudo o que ele fazia parecia ser premeditado, soando como um combinado de atitudes que culminariam na sua partida tardia, era uma espécie de aviso do que estava por vir, como quando você olha um colorido que se esfumaça suavemente e você tem a certeza absoluta de que vai desaparecer.
Eu havia vencido e então senti uma tremenda pena do coitado. Ele desceu seu olhar sem brio para o relógio de pulso, eu acompanhei o gesto com apreensão, percebendo isto, disse-me que o papo estava bom mas que tinha combinado alguma coisa com não sei quem e que teria que ir. Sorri um sorriso iluminado de quem acabara de receber sua carta de alforria e disse que tudo bem, vou te levar ali, virei apressada e ele me acompanhou agora em silêncio. Silêncio agora, meu filho? Agora o silêncio já não me bastava. Dei-lhe um beijo sonso na bochecha e, ao pisar do lado de fora, virou-se para dizer mais alguma coisa mas antecipei-me com um tchau seco, vi-o aturdido se virar e começar a descer os degraus, nunca houve um som que me agradasse mais do que o som dos passos dele se afastando de mim. Fechei a porta com uma rapidez que beirava o desespero.
Estava livre enfim.