Dois amigos me avisaram que viriam aqui. Pensei um instante nos dois, refiz a imagem um pouco distraída que tenho de cada um. Sei há quantos anos se conhecem, como vivem. A gente sempre sabe dos amigos bem mais do que o resto do mundo, e como o resto do mundo já fui amiga de amigos que brigaram. É tão triste. É penoso e incômodo porque, então, temos que passar a considerá-los em separado e cada um fica sem uma parte da sua realidade. A realidade pra nós, eram esses amigos, não apenas no que os unia, mas também no que os separava quando estavam juntos. Preferimos que vivam mal, porém unidos, é mais cômodo pra nós.
No entanto, quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que, tadavia, se contradizem. A primeira é de que, perante essa realidade, soam pálidas todas as ficções, porque são sonhos em que sentimos sentimentos que na vida não se sentem e se conjugam formas que na vida não se encontram. A segunda é de que, sendo desejo de toda alma o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares, e sendo isso impossível, a vida só pode ser vivida por inteiro se for vivida subjetivamente, só negada pode ser vivida na sua totalidade. Essas duas verdades são irredutíveis uma à outra. Tem-se contudo que seguir uma, saudoso da que não segue, ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo, numa espécie de nirvana próprio.
Como outras pessoas, esses dois já haviam se estranhado, mas aqui viriam eles, juntos. A campainha tocou. Acendi a luz e fui lhes abrir a porta e também, discretamente, o coração. "Quase não batemos, vimos as luzes apagadas. O que você tá fazendo aí no escuro?". Disse que nada, às vezes gosto de ficar no escuro. "Não disse que ela era uma morcegona?". Trouxe uma dose de cuba libre pra um e uma cerveja pro outro. Sou uma morcegona cordial.
Olhei-os enquanto bebia. Gostava de como estavam vestidos. Quanto a eles próprios, já os conhecia tanto, em seus encantos e em seus defeitos, que não me lembro de considerar se em conjunto eram bonitos ou não, e tenho uma leve surpresa sempre que ouço alguma opinião de gente estranha. Não consigo nem imaginar qual seria a impressão que eu teria se os visse agora pela primeira vez. Pensei todas essas bobagens em um segundo. Sentia-me grata por terem vindo me ver. Sentia-me quase comovida.
Feliz é quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam sol quando há sol, e quando não há sol procuram o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação e se deleita na contemplação de vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculos externo de todas as impressões alheias. Por fim, feliz é aquele que abdica de tudo e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado ou diminuído.
Mas nada me satisfaz, nada me consola. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso nem ser nada, nem ser tudo: sou apenas a ponte de passagem entre o que tenho e o que não tenho. Que bosta.
No entanto, quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que, tadavia, se contradizem. A primeira é de que, perante essa realidade, soam pálidas todas as ficções, porque são sonhos em que sentimos sentimentos que na vida não se sentem e se conjugam formas que na vida não se encontram. A segunda é de que, sendo desejo de toda alma o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares, e sendo isso impossível, a vida só pode ser vivida por inteiro se for vivida subjetivamente, só negada pode ser vivida na sua totalidade. Essas duas verdades são irredutíveis uma à outra. Tem-se contudo que seguir uma, saudoso da que não segue, ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo, numa espécie de nirvana próprio.
Como outras pessoas, esses dois já haviam se estranhado, mas aqui viriam eles, juntos. A campainha tocou. Acendi a luz e fui lhes abrir a porta e também, discretamente, o coração. "Quase não batemos, vimos as luzes apagadas. O que você tá fazendo aí no escuro?". Disse que nada, às vezes gosto de ficar no escuro. "Não disse que ela era uma morcegona?". Trouxe uma dose de cuba libre pra um e uma cerveja pro outro. Sou uma morcegona cordial.
Olhei-os enquanto bebia. Gostava de como estavam vestidos. Quanto a eles próprios, já os conhecia tanto, em seus encantos e em seus defeitos, que não me lembro de considerar se em conjunto eram bonitos ou não, e tenho uma leve surpresa sempre que ouço alguma opinião de gente estranha. Não consigo nem imaginar qual seria a impressão que eu teria se os visse agora pela primeira vez. Pensei todas essas bobagens em um segundo. Sentia-me grata por terem vindo me ver. Sentia-me quase comovida.
Feliz é quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam sol quando há sol, e quando não há sol procuram o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação e se deleita na contemplação de vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculos externo de todas as impressões alheias. Por fim, feliz é aquele que abdica de tudo e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado ou diminuído.
Mas nada me satisfaz, nada me consola. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso nem ser nada, nem ser tudo: sou apenas a ponte de passagem entre o que tenho e o que não tenho. Que bosta.