terça-feira, 21 de maio de 2013

não faça nunca o que precisa ser feito ontem

Seu desejo era a liberdade, um 1968 francês particular, o próprio grito do Ipiranga porque uma hora cansa e cansou, cansou desde quando a memória conseguia alcançar e olha que tinha a cabeça muito boa. Era  um cansaço bafiento de verão, desses em que a força de vontade é suprimida pelo calor sufocante, com as calçolas infantis suadas, tez, têmporas e ancas também suadas, tudo um horror úmido e brilhante, mas era isso por dentro e de dentro pra fora. E fora era o tédio, o fastio, refeições feitas às pressas, atividades domésticas que odiava executar, talhos nos dedos finos, unhas por fazer e coisa e tal. Dali da sua caverna abafada, através de algumas fissuras, via o mundo girando lisergicamente e ela o observava com o olhar desinteressado e míope, o que estava à distância era embaçado e disforme, o que enxergava de perto era deformado e asqueroso, mas era o movimento que chamava a sua atenção, a beleza e a monstruosidade daquela roda gigante entorpecida, ensopada de misérias e grandezas supremas atreladas umas às outras, como uma grande molécula que você pode manipular a grosso modo. E de fora para dentro, ao voltar a cabeça para o interior, era o regresso ao misantropismo de sempre, com as pessoas de sempre e outras pessoas pra encher a paciência tanto quanto pelos púbicos possuía. O aroma do ambiente era a mistura do cheiro de peido do feijão recentemente cozido, com o do café recentemente coado e com o da nicotina recentemente tragada, um cheiro agridoce meio adstringente que fazia a língua grudar por dentro, como se tivesse tomado um copo de cimento. Olhou para a pia e viu uma montanha de pratos, copos, panelas e talheres com comida seca e encrostrada, foi quando se deu conta de que a sua vida havia se reduzido a lavar louça. Desjejum, almoço, lanche, janta, e a sua vida era somente uma ação cíclica de lavar louça. Pensou no medo de não ser grande nunca, grande figurativamente e nunca literalmente, sobrando-lhe o pavor oscilante e nauseabundo, que obnubilava o eu por cima do eu e por cima de outros eus até que chegasse a ela, até que o eu fosse apenas uma imagem turva e distorcida de quem era. E o medo lhe figurava como uma criatura gosmenta que rastejava pelas frestas, pegando-a no encalço quando estivesse lavando as putas das louças, ou simplesmente no momento íntimo de desdém, em que estaria se olhando no espelho do banheiro após o banho, nua da cintura pra cima, reparando nas gotas que escorriam dos cabelos molhados até o bico endurecido do seio esquerdo e mergulhando no precipício da insignificância, tendo completado a missão do simples compromisso biológico. Sentiu uma pontada na bexiga e sentiu que precisava mijar, voltando a si, resolveu que seria melhor deixar a revolução para depois, tinha mais o que fazer. Às louças.