terça-feira, 25 de setembro de 2012

um assunto que ficou pela metade

- Não tô com o coração partido, tô com a alma partida, entende a diferença?
Disse-me depois de concluir que não sofria de desilusão amorosa mas sim de desilusão humana. Esse tipo particular de decepção sempre me remete à ausência de vida e não estou falando no sentindo biológico, é algo próximo à preguiça de existir, de estar sem ser, de ser nulo ou de estar nulo. Chame a isso de qualquer coisa, não importa nem um pouco porque uma definição aqui ainda seria insuficiente. No entanto, sempre me ocorre a imagem pálida e flutuante de alguém caminhando até à padaria na velocidade de um verme debaixo do sol quente, com toda a metodicidade cabível ao ato, sem conseguir variar o trajeto, mudar o lado do passeio, observar o que não seja o habitual, como que por medo de fazer algo diferente e sair da margem de segurança ilusória, criada pra não se transformar num paranóico ou num demente.
O que fica escancarado é a espantosa falta de vida em tudo. Enchem a cara, lêem, escrevem, masturbam, ouvem, falam, rezam ou fodem com a mesma paixão de quem está num velório. E é preciso saber fazer isso com toda a peculiaridade possível, mas até mesmo as ações corriqueiras e de simples execução parecem estar contaminadas por essa indolência, de forma que coisas tipicamente humanas estão se tornando imperícias humanas, senão atividades humanamente impossíveis.
Essa é uma época em que a informação tem o valor do ouro, entretanto, quanto mais as pessoas conseguem aprender sobre qualquer coisa, mais animalescas se tornam e mais negligentes ainda com o que realmente lhes aperfeiçoaria, embora isso não constitua nenhuma novidade. Então fico pensando que talvez teria sido melhor se tivéssemos continuado com nossos costumes aborígenes, vivendo em choupanas, andando pelados por aí e tomando água de coco sentados à sombra de uma palmeira.
Acendi um cigarro e dei uma golada naquele café já meio frio, retorci os lábios e disse que "entendo perfeitamente a gênese do seu imbróglio, no entanto, o que não compreendo é você estar com sua alma partida e continuar a parti-la". Sabe, é serviço de português. É enxugar gelo. É dar murro em ponta de faca. É uma infinidade de frases feitas que até poderiam estampar cada dia de uma agenda. "Portanto, se está sofrendo de desilusão humana e persiste nessa coisa toda, então você é meio retardado", continuei. E ri. Não por ter visto piada naquilo, mas porque me passou pela cabeça que ele poderia ter ficado ofendido. Não é todo mundo que continua receptivo depois de ser chamado de retardado. E naquele caso ele realmente estava sendo.
- É assistir a minha, a sua, a nossa miséria humana num rosto namorado. Mas a questão nem é essa mais, se fosse só isso tava legal. É repetitivo, triste, castrante.
Disse-lhe que gostar de uma pessoa não deveria implicar repetição, castração e tristeza. Disse isso mesmo sabendo que a convivência é assassina e que é justamente a isso que as pessoas costumam reduzir não só os seus relacionamentos, mas a própria vida também. E o pior, realizam essa tarefa com o brio que lhes falta em todo o resto, mantendo seus narizes empinados e ostentando caras esnobes como se estivessem fazendo algo louvável, digno de aplausos e reverências subservientes.
Apaguei o cigarro e me despedi porque tinha mesmo que ir. Nunca mais tocamos no assunto.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

pelo menos através da janela eu consigo ver a luz

Num daqueles papos que costumávamos ter durante a caminhada, o B. nos contou que ele havia galgado sete anos da sua vida em frente ao computador, observando de rabo de olho uma parede verde durante todos os dias, disse que depois de aposentar continuaria vendo aquela mesma parede verde. Eu passei muito tempo em frente ao computador, dentro do meu cubículo que às vezes costuma atender por quarto, mantendo uma relação equivalente - e até meio sórdida -, com a janela. Aliás, ela sempre assumiu a forma do atalho imaginário que eu escolhia pros meus problemas. Colocaria minha bunda branca ali, jogaria o corpo pra frente e pronto. 
Nunca o fiz, claro. Sobretudo porque não acho que seja a hora, talvez uma bigorna me atinja antes que eu crie coragem de me impulsionar pra fora do parapeito ou qualquer coisa assim, não sei. Só tenho medo de que tanto um acidente quanto um salto fatídico me ocorram ou tarde demais ou cedo demais. Então encerraria minha participação patética no mundo ou como um talento prematuramente desperdiçado ou como uma fracassada suicida. Ainda não determinei qual será o momento exato em que deverei sair de cena, a idéia é algo como quando um jogador decide que vai deixar os gramados no seu auge, ao passo em que outros insistem e acabam cagando com tudo. Ou como a Amy Winehouse que se foi antes que virasse uma Whitney Huston. Tanto faz. Por isso entenda que quero perder as chatices dos coquetéis mas também não quero comer restos no lixo. Portanto, o que me falta mesmo é o timing.
Considerando que abri mão de ser diplomada, a ácida realidade é que não irei desfrutar de um emprego em banco recebendo um salário generoso, não irei me relacionar com milionários e sequer receberei cem paus por um rolo de papel higiênico. Todavia, não é isso o que eu priorizo, muito embora tenha sido precisamente isso o que considerava ser felicidade há uns sete anos atrás. A típica felicidade de merda, traduzida em objetos que decorariam uma casa fria e estúpida, com alguns quadros de algum pintor da moda pra quebrar todo aquele gelo e distanciamento, aonde eu receberia meus amigos igualmente estúpidos e frios com suas conversas repletas de certezas, cotações e problemas conjugais ou triunfos financeiros e conquistas tão baldadas quanto a própria vida deles. De modo que não haveria outros meios disponíveis pra me tornar ainda mais ôca.
Minha objeção às convenções e regras é insistente pra que eu não me torne vazia de vontade própria. Objetivamente, não há vantagem alguma em estar atrelado a um estilo de vida imposto por algum babaca montado na grana e que, obviamente, só intenciona perpetuar a ilusão do seu status. Aliás, não existe diferença entre um animal de tração com antolhos e uma pessoa que se devota à escravidão mental, exceto pelo fato de que um ser humano, normalmente, o faz com voluntariedade.
E bem, confesso que por essa minha total inclinação à contravenção, as minhas perspectivas não são nem um pouco animadoras, contudo, no que concerne a anulação de si mesmo, as minhas chances de seguir a vida como uma vaca de presépio são menores do que as dele. Além disso, a janela permanecerá ali: solícita, gratuita e à espera. Porque tudo espera até mesmo a janela, essa ou qualquer outra em qualquer outro lugar. Ao contrário de uma parede verde, que não permite que nada entre, que nada saia e, menos ainda, é capaz de eventualmente resolver os problemas de alguém.