sábado, 28 de agosto de 2010

asco e vertigem

Não é nenhuma novidade colorida de que tenho elementos espirituais de boêmio, daqueles que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e o simples gesto de obtê-la de volta, dorme na ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do boêmio - o descuido fácil das emoções imediatas e abandonadas - porque nunca passei de uma boêmia isolada (o que é um absurdo) ou uma boêmia mística (o que é uma coisa impossível).
Tenho elementos espirituais de boêmio e por isso sinto náusea. Sinto náusea física decorrente dessa repulsa por vulgaridades, que é, aliás, a única repulsa que há em mim já faz algum tempo. E também, às vezes, talvez por capricho, tenho um desejo em aprofundar essa náusea provocando vômito só para aliviar a vontade de vomitar.
E é sempre a mesma sucessão de frases, de argumentos, de ordinarices e merdices. Esses que passam, sós ou juntos, não dizem, ou dizem milhões de coisas que eu não ouço ou finjo não ouvir, mas todas essas vozes me são absurdamente claras, com a transparência de uma taça de cristal.
E essa gente é melhor quando descrevo do que quando sinto. Ao descrever, esqueço e passa-me a náusea, vejo tudo fotograficamente, até mesmo a escada onde eles sobem aos tropeços, apalpando-se e atropelando-se na falsidade.
A intriga, a prosápia dita daquilo que não se fez, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, o contentamento de cada um desses pobres bichos vestidos com a ignorância da inimportância do que são... tudo isto me produz a imagem de um animal monstruoso.
Não ouso dizer - nem mesmo através da escrita - o que tenho visto nestas dezenas de olhares casuais, nas direções involuntárias que tomam, nos seus atravessamentos sujos. Não ouso dizer porque, quando se provoca o vômito, é preciso provocar só um.

domingo, 15 de agosto de 2010

sobre a morte repentina no sentido figurado

Acordei morta. Não decifrei as razões e não entendi os porquês, muito embora não haja porquês e razões para a morte, mas o fundamental é que estava morta. Olhei-me no espelho e até achei que estava com um bom aspecto (se é que alguma vez tinha tido bom aspecto), mas não parecia nada com estar morta. Sempre fui um pouco feiosa, então ocorreu-me que talvez fosse apenas a sensação de estar um bocadinho mais fria por dentro traduzida como coisa morta por fora.
À segunda vista, tudo parecia escuro de sentimento. E aquela beleza que não existia revestia o entorno e separava as metades perfeitas da vida, tal qual uma borracha articulando vãos em diálogos. Lembranças transformadas em fundações para os muros serem edificados na memória. É triste como quando as coisas desfeitas são sentidas de fato, elas passam a ter a palidez de um sol à noite ou o respirar profundo do sono pesado.
Não sei se por ingenuidade ou por burrice, percebi tardiamente que palavras são apenas o veículo da ilusão, criadas pelas forças das circunstâncias. Uma ligeira inspeção na consciência foi o suficiente para virar o aparente ao contrário e verticalizar a linha do horizonte no sentido inverso .
Na diligência do penhasco, senti à volta o vôo circular da rotina que impregnou o ar do que sempre foi. E, de forma bastante aborrecida, observei a consternação que rodeava cada acontecimento e lamentava a apatia da vida cíclica, que pode não passar da eterna e vergonhosa insatisfação.
Hoje, as emoções ficam do lado de lá. Sei que qualquer sopro cretino é capaz de apagar as velas desse bolo estragado de tanto esperar. É só soprar.