terça-feira, 18 de dezembro de 2012

brincadeira distorcida de criança grande


- Não, eu não preciso de tantas justificativas que mais parecem discursos políticos ensaiados, frases simuladas e planejadas, porque já me sinto estúpida o suficiente, então seria de extremo bom tom que você dissesse logo que o sexo é sensacional e deixasse essa baboseira de lado, sabe? A gente encaixa, torcemos pro mesmo time e gostamos de encher a cara, eu sei, sei disso tudo, acontece que seria mais confortável caso você se limitasse apenas ao “só quero te comer”, não fico nem um pouco à vontade com esse papo de que você não me acha uma pessoa de merda, o que é difícil de acreditar pois eu realmente sou uma pessoa de merda e vou fazer alguma burrada no meio do caminho que será irreversível e já tentei alertá-lo um porrilhão de vezes e você ignora e, honestamente, não sei dizer se isso é bom ou ruim. Mas cá estamos nós dois atribuindo um pouco de decência a seja lá o que for isso que estamos fazendo. Eu muda, tentando achar uma forma de dizer de maneira compreensível o que penso, e você pensando que eu não quero papo, enquanto te olho de lado e observo sua expressão cabisbaixa, frustrada e magoada e aquilo é minha culpa e desculpa mas ei, eu quero conversar sim, só não sei como, ok? Sempre fui péssima falando, sério. Eu quero te dizer que não sei lidar com a expectativa alheia, nunca soube, não quero te decepcionar e partindo da premissa de que somos humanos falíveis, eu vou cagar com alguma coisa e sairemos magoados e separados e endurecidos e perderemos um pouco mais da mágica que ainda resta em nós e nos faz sempre tentar mais uma vez, não quero que você perca a fé. E eu gosto da sua fé e da sua mágica que você executa tão habilmente como se tivesse sido o mestre de Houdini, fazendo o truque mundialmente famoso que manda a centelha ruim pro inferno e deixa no lugar um gloss de morango com glitter daqueles de criança, mas você não sabe o que é um gloss, nem glitter, muito menos um gloss com glitter então é melhor eu não colocar as coisas dessa forma, provavelmente vai me achar uma doida varrida ou uma retardada e eu só quero que você ache que está tudo bem eu ser como sou porque pra mim está ótimo você ser como é, recíproca é uma das coisas mais lindas do mundo. Meu olho ameaça expulsar a beleza de tudo que eu pensei pra te dizer e você continua com uma tremenda cara de cu e era tão melhor quando você estava sorrindo expansivamente no palco do seu teatro grandioso fazendo mágicas pra mim. Eu também sou uma mágica e você não sabe, meus truques são os asquerosos “estrago a pessoa adorada em sete dias” e “vou te frustrar até você me odiar”, mas quer saber? Esses são atos conhecidos e desgastados, quero me aposentar e passar a vez a um profissional muito melhor do que eu. Tento te contar da navalha que eu tenho atravessada nesse meu coração meio morto, zumbizado, meio sonso e derrotado mas não dá certo, minha dor te incomoda, deve ser chato eu falar de alguém que me tenha tocado antes de você e me ferido antes também, é melhor eu parar pra não te arrastar pro meu parque de diversões melancólico em um dia cinzento e triste. É tão difícil soltar a sua mão agora, mesmo tendo dito pra você ir.
Não foi. Ela aliviou. Beijaram-se.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

do gozo se vem e pelo gozo se vive

Com uma das mãos ele desceu a alça da camisola de seda dela com a delicadeza que nunca teve, a outra tratou logo de embrenhar pelo occipital menor - aquele trecho que compreende a nuca e a parte atrás da orelha -, enquanto olhava dentro dos seus olhos escuros. Sentiu na pele áspera dele a pele lisa dela e a temperatura baixa daquele corpinho trepidante que poderia retorcer se quisesse. Mas não queria. Toda a gentileza e carinho eram apenas pretextos que dissimulavam a sordidez dos seus pensamentos. Queria comê-la ali mesmo sem se importar com as roupas ou se a camisola entraria junto como uma camisinha. Mas não podia. Amabilidade era o caminho moralmente aceito que o levaria até o par de vulvas que ela tinha entre as coxas.
De longe eram apenas silhuetas safadas no escuro, mas de perto não passavam de duas criaturas patéticas na noite que tentavam, sobretudo, dignificar um pouco essa qualquer coisa animalesca que conduz os seres humanos ao sexo. Pessoas... essas criaturas odiosas e repugnantes que são capazes de ferir e violar por uma gozada. De dizer para depois desdizer por uma gozada. De fingir por uma gozada. De mentir e ludibriar por uma gozada. De deixar um rastro de bosta, de tristeza e de horror por uma gozada. E uma gozada dura 30 segundos.
Acariciou sua bunda redonda, apertou seus peitos como um peão ordenhando uma vaca, ela correspondia com equivalente lassidão, deslizando suas mãos pelo corpo dele em um ciclo que sempre terminava no pinto. E os gestos dela eram como um hamster fazendo trajetos em uma gaiola apertada. Da casinha para a roda, da roda para a plataforma, da plataforma para a escada, da escada para a roda. Do pescoço para o peitoral, do peitoral para as costas, das costas para a bunda, da bunda para o pinto. Aliás, o homem é um pinto e pintos não são espertos.
O mundo está entupido de gente. Gente que se encontra abaixo da linha de pobreza, tem dez filhos e ainda quer uma gozada. Políticos que constrangem suas famílias por uma gozada. Até o PC Farias adormeceu, foi alvejado na cama e morreu de bobeira por uma gozada. O cara vai pra noite por uma gozada. A mulher vai pra noite atrás de uma gozada. E não, não recebem um troféu por isso, nem uma medalha de honra ao mérito ou uma estrelinha dourada no caderno como congratulação. O prêmio é apenas mais uma dúzia de gozadas, o que reduz uma espécie inteira a um grande e melado esporro.
Transaram como bichos. Ao final, ela deu de ombros e acendeu um cigarro. Não queria papo, só queria ver aquela coisa longe dali. Ao perceber isso, ele se mostrou um homem confuso e estúpido, perdido e sem condições de exercer a função secular que lhe foi designada de se sentir a última folha de coca da Colômbia após uma trepada. Pra duas pessoas que buscavam apenas orgasmos, até que estava de bom tamanho. Ela conseguiu e ele, apesar de tudo, se sentiu diminuído e usado. Tudo no seu devido lugar.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

reflexões escritas no balcão de uma lanchonete da rodoviária de juiz de fora

Então eu estava ali mofando na rodoviária porque depois de perder o ônibus por dois dias seguidos, não quis correr o risco e acabei exagerando no chegar mais cedo por isso cheguei cedo demais. Duas horas de espera curtindo uma ressaca de leve, aliás, havia tempo que as rebordosas alcoólicas eram tão intensas que um simples desconforto físico já me figurava como motivo de celebração. Pois bem, eu estava sentada pensando sobre a grande escritora que nunca serei, sem protagonizar uma propaganda da Nextel contando minha história de superação na vida, omitindo as cagadas e os podres só pra poder conferir a aura de respeitabilidade do Cristo escorraçado e crucificado, esparramada naquele banquinho e muito puta da vida por ter que gastar dinheiro pra reaver meus pertences, além de ter que olhar no focinho mal esculpido da minha irmã, que pretende me extorquir uma quantia exorbitante considerando o tempo que morei com ela no Rio de Janeiro. O que me incomoda mesmo é ter que vê-la com aquela cara meio estranha aonde só se nota a gengiva superior saliente demais que sorri esguichando peçonha, a testa imensa que começa no meio do crânio como um homem calvo e é enxergar tudo isso de perto sem poder dar um murro, um soco apenas, nada mais e foi quando comecei a me sentir péssima de verdade por querer enfiar a mão no rosto de macho dela. Zaaaaas! Acabou de passar um homenzinho deficiente em um skate, a falta de mobilidade bípede foi suprimida por um par cintilante de luvas verde-bandeira, mentira, nem sei o que é uma cor verde-bandeira, que protegiam as suas mãos durante remadas frenéticas, deslizando pelo piso liso, deixando o rastro no ar do seu Zaaaaas alucinado e aquilo é dotado de uma coragem imensa ou extravagância absurda que não consigo exprimir e me ocorreu que talvez seja ele quem mereça uma propaganda da Nextel ou um programa inteiro em sua homenagem e é mais merecedor disso do que eu. E toda vez que vejo cenas desse naipe, me compadeço e passo a achar o mundo tão lindo como deveria ter achado a vida inteira, ao invés de odiá-lo a cada segundo por toda a minha existência como sempre fiz. E aqui estou eu me perdendo em digressões quando, na verdade, eu só queria contar que senti um perfume misturado ao meu e que os dois juntos formavam precisamente o cheiro ao qual já estou me acostumando de forma arriscada, principalmente porque sou uma pessoa de hábitos perigosos, estúpidos e masoquistas, e o odor algemado às minhas narinas me fez perceber que até gostava daquilo de uma maneira melancólica e insana, como tudo que é próprio de mim, quase senti uma saudade meio doida que já nem sei definir se é carência ou vontade, só sei que vai acabar em merda...

terça-feira, 20 de novembro de 2012

crônicas da carioca do brejo IV – mostrando a bunda no centro da cidade


Sempre gostei de me considerar uma cidadã de bem. Falível como qualquer ser humano, mas de bem, o que é absurdamente diferente de ser uma cidadã exemplar. Sou uma cidadã de bem que precisa comer, comprar cigarro e custear a cerveja. Entretanto, como tudo tem o seu revés, nem alimentação e nem bebida caem do céu, o governo continua exercendo sua função constitucional que lhe outorga o direito de pisotear o povo, além do fato de que a Souza Cruz e a Ambev ainda não fazem caridade, pelo menos até onde eu saiba. Por isso me vejo dependente de um ofício, um trabalho preferencialmente lícito, do tipo que não envolva caftinagem, tráfico, lavagem de dinheiro ou extorsão. Partindo dessa premissa romanesca do dinheiro suado e da consciência limpa, imprimi vinte currículos e resolvi distribui-los pelo centro da cidade. Passou da hora de eximir meus pais da responsabilidade de bancar as minhas extravagâncias. Preciso ser justa.
Justiça. Tenho pensado muito nessa palavra, especialmente sobre como até quando tentamos aplicá-la da melhor maneira possível, continuamos um bando de cretinos. Mesmo sendo justos, somos injustos. Socialismo. Capitalismo. Nazismo. Liberalismo. Conservadorismo. Pacifismo. Neoliberalismo. Terrorismo. São todos ótimos exemplos de tentativas frustradas de consertar as coisas de alguma forma. O problema das civilizações sempre foi esse: quando acertavam de um lado, cagavam do outro. A Grécia, por exemplo, fundamentou a democracia que conhecemos, pena que ela só funcionava para os eupátridas, ou seja, homens gregos e ricos. O resto – estrangeiros, pobres, mulheres, escravos e crianças – que se fodessem pra lá enquanto uma minoria de lunáticos decidia a vida de milhares de pessoas. E aquilo era a melhor justiça. Foi como escolher um detergente escroto na prateleira do mercado: não é bom, não tira a gordura e os germes, só dá um aspecto de limpeza. E até hoje abrimos mão de tomar decisões, delegando-as a gente ainda mais gananciosa do que nós mesmos. A áspera realidade é que não queremos ser diretamente responsáveis pelas guerras, pela inflação, pelas chacinas, por programas assistencialistas de administrações populistas, pelas almas que o narcotráfico leva, por mensalões. Ninguém quer que esse abacaxi fálico atravesse nossos cus diariamente a cada vez que lermos ou assistirmos o noticiário. O sangue pode até escorrer pela crosta terrestre e gotejar no Cosmos como uma torneira mal fechada, contanto que não sejamos nós a assinar os documentos que viabilizam as barbaridades. A solução é desviar o olhar, permitindo que desempenhem esse papel repugnante enquanto nos reproduzimos e fingimos ter controle sobre as coisas ou que somos felizes e …
… quando me dei conta, meu vestido havia alçado voo até a cabeça. Fiquei com o rabo de fora em pleno centro do Rio de Janeiro quando passei pelas frestas de ventilação de um banco. Segurava na frente e subia atrás, segurava atrás e subia na frente. Juro que mais de trinta pessoas assistiram a cena digna dos programas medonhos que passam na TV aos domingos.  Não que eu tenha algo de excepcional a mostrar, porque não tenho mesmo, só sei que a Marylin Monroe se tornou uma garotinha do coro da igreja. E eu… eu estava lá mostrando minha calcinha branca e enorme na metrópole. Agora posso dizer que tive uma estreia triunfal na cidade maravilhosa.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

um assunto que ficou pela metade

- Não tô com o coração partido, tô com a alma partida, entende a diferença?
Disse-me depois de concluir que não sofria de desilusão amorosa mas sim de desilusão humana. Esse tipo particular de decepção sempre me remete à ausência de vida e não estou falando no sentindo biológico, é algo próximo à preguiça de existir, de estar sem ser, de ser nulo ou de estar nulo. Chame a isso de qualquer coisa, não importa nem um pouco porque uma definição aqui ainda seria insuficiente. No entanto, sempre me ocorre a imagem pálida e flutuante de alguém caminhando até à padaria na velocidade de um verme debaixo do sol quente, com toda a metodicidade cabível ao ato, sem conseguir variar o trajeto, mudar o lado do passeio, observar o que não seja o habitual, como que por medo de fazer algo diferente e sair da margem de segurança ilusória, criada pra não se transformar num paranóico ou num demente.
O que fica escancarado é a espantosa falta de vida em tudo. Enchem a cara, lêem, escrevem, masturbam, ouvem, falam, rezam ou fodem com a mesma paixão de quem está num velório. E é preciso saber fazer isso com toda a peculiaridade possível, mas até mesmo as ações corriqueiras e de simples execução parecem estar contaminadas por essa indolência, de forma que coisas tipicamente humanas estão se tornando imperícias humanas, senão atividades humanamente impossíveis.
Essa é uma época em que a informação tem o valor do ouro, entretanto, quanto mais as pessoas conseguem aprender sobre qualquer coisa, mais animalescas se tornam e mais negligentes ainda com o que realmente lhes aperfeiçoaria, embora isso não constitua nenhuma novidade. Então fico pensando que talvez teria sido melhor se tivéssemos continuado com nossos costumes aborígenes, vivendo em choupanas, andando pelados por aí e tomando água de coco sentados à sombra de uma palmeira.
Acendi um cigarro e dei uma golada naquele café já meio frio, retorci os lábios e disse que "entendo perfeitamente a gênese do seu imbróglio, no entanto, o que não compreendo é você estar com sua alma partida e continuar a parti-la". Sabe, é serviço de português. É enxugar gelo. É dar murro em ponta de faca. É uma infinidade de frases feitas que até poderiam estampar cada dia de uma agenda. "Portanto, se está sofrendo de desilusão humana e persiste nessa coisa toda, então você é meio retardado", continuei. E ri. Não por ter visto piada naquilo, mas porque me passou pela cabeça que ele poderia ter ficado ofendido. Não é todo mundo que continua receptivo depois de ser chamado de retardado. E naquele caso ele realmente estava sendo.
- É assistir a minha, a sua, a nossa miséria humana num rosto namorado. Mas a questão nem é essa mais, se fosse só isso tava legal. É repetitivo, triste, castrante.
Disse-lhe que gostar de uma pessoa não deveria implicar repetição, castração e tristeza. Disse isso mesmo sabendo que a convivência é assassina e que é justamente a isso que as pessoas costumam reduzir não só os seus relacionamentos, mas a própria vida também. E o pior, realizam essa tarefa com o brio que lhes falta em todo o resto, mantendo seus narizes empinados e ostentando caras esnobes como se estivessem fazendo algo louvável, digno de aplausos e reverências subservientes.
Apaguei o cigarro e me despedi porque tinha mesmo que ir. Nunca mais tocamos no assunto.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

pelo menos através da janela eu consigo ver a luz

Num daqueles papos que costumávamos ter durante a caminhada, o B. nos contou que ele havia galgado sete anos da sua vida em frente ao computador, observando de rabo de olho uma parede verde durante todos os dias, disse que depois de aposentar continuaria vendo aquela mesma parede verde. Eu passei muito tempo em frente ao computador, dentro do meu cubículo que às vezes costuma atender por quarto, mantendo uma relação equivalente - e até meio sórdida -, com a janela. Aliás, ela sempre assumiu a forma do atalho imaginário que eu escolhia pros meus problemas. Colocaria minha bunda branca ali, jogaria o corpo pra frente e pronto. 
Nunca o fiz, claro. Sobretudo porque não acho que seja a hora, talvez uma bigorna me atinja antes que eu crie coragem de me impulsionar pra fora do parapeito ou qualquer coisa assim, não sei. Só tenho medo de que tanto um acidente quanto um salto fatídico me ocorram ou tarde demais ou cedo demais. Então encerraria minha participação patética no mundo ou como um talento prematuramente desperdiçado ou como uma fracassada suicida. Ainda não determinei qual será o momento exato em que deverei sair de cena, a idéia é algo como quando um jogador decide que vai deixar os gramados no seu auge, ao passo em que outros insistem e acabam cagando com tudo. Ou como a Amy Winehouse que se foi antes que virasse uma Whitney Huston. Tanto faz. Por isso entenda que quero perder as chatices dos coquetéis mas também não quero comer restos no lixo. Portanto, o que me falta mesmo é o timing.
Considerando que abri mão de ser diplomada, a ácida realidade é que não irei desfrutar de um emprego em banco recebendo um salário generoso, não irei me relacionar com milionários e sequer receberei cem paus por um rolo de papel higiênico. Todavia, não é isso o que eu priorizo, muito embora tenha sido precisamente isso o que considerava ser felicidade há uns sete anos atrás. A típica felicidade de merda, traduzida em objetos que decorariam uma casa fria e estúpida, com alguns quadros de algum pintor da moda pra quebrar todo aquele gelo e distanciamento, aonde eu receberia meus amigos igualmente estúpidos e frios com suas conversas repletas de certezas, cotações e problemas conjugais ou triunfos financeiros e conquistas tão baldadas quanto a própria vida deles. De modo que não haveria outros meios disponíveis pra me tornar ainda mais ôca.
Minha objeção às convenções e regras é insistente pra que eu não me torne vazia de vontade própria. Objetivamente, não há vantagem alguma em estar atrelado a um estilo de vida imposto por algum babaca montado na grana e que, obviamente, só intenciona perpetuar a ilusão do seu status. Aliás, não existe diferença entre um animal de tração com antolhos e uma pessoa que se devota à escravidão mental, exceto pelo fato de que um ser humano, normalmente, o faz com voluntariedade.
E bem, confesso que por essa minha total inclinação à contravenção, as minhas perspectivas não são nem um pouco animadoras, contudo, no que concerne a anulação de si mesmo, as minhas chances de seguir a vida como uma vaca de presépio são menores do que as dele. Além disso, a janela permanecerá ali: solícita, gratuita e à espera. Porque tudo espera até mesmo a janela, essa ou qualquer outra em qualquer outro lugar. Ao contrário de uma parede verde, que não permite que nada entre, que nada saia e, menos ainda, é capaz de eventualmente resolver os problemas de alguém.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

nem alívio e nem ojeriza

Lavantei cambaleando como a bebum que encarnei naquela madrugada e senti na boca um gosto medonho que se aproximava de querosene. Resolvi que precisava me contemplar pra ter noção do estrago e então fui abrir a porta do armário, mas aquela simples tarefa se realizou com a dificuldade de quem tenta empurrar um elefante. Deparei-me com um rosto que nem de longe se assemelhava ao meu, aliás, não me recordava de ter aquela expressão patética de quem está sentindo pena de si e bem, talvez fosse culpa da ressaca, mas é sério que a minha memória apontava pra uma mulher que ostenta uma fisionomia muito mais firme. Só que a minha cara estava amassada demais, os olhos tinham remelas demais e foram se descolando com relutância, como se depilassem meus cílios. A cabeça doía e a própria vida me doía ainda mais do que a cabeça, de modo que tanto a cabeça como a vida me eram incômodas e pensei que "puta merda, eu só preciso de uma cerveja agora pra amenizar a desgraça".
Havia vários dias que eu acordava com umas idéias esdrúxulas e com a vontade áspera de encher a cara porque é assim que funciono: busco a saída fácil pros meus pequenos problemas e apelo aos recursos óbvios pra aliviar o vestígio daquele sentimento injustificado ao qual não consigo dar um nome, mas que é chato e faz com que me sinta ainda mais estúpida. Seguia me arrastando pelos cantos ao longo do dia à espera ou da cerveja ou da inspiração que não chegavam nunca, a primeira pela falta de grana e a segunda pela falta de ânimo. Mas sempre as esperando como o crédulo acredita na vinda de Jesus de Nazaré. E a tarde correu no marasmo e improdutividade de sempre, comigo obervando as paredes, sentindo dificuldade até pra escolher a música que queria ouvir e percebi que já nem queria ouvir música, pelo menos as minhas músicas, queria as músicas dos outros e até mesmo a vida dos outros, na verdade eu queria qualquer coisa que não fosse minha e não me fizesse lembrar de mim.
Aquele horário, 18:26h da tarde, era o pior porque nunca favorecera meu estado de espírito, afinal, essa parte do dia sempre chegava inevitavelmente carregada da angústia mórbida da transição, acentuada pela sensação de inutilidade que me persegue desde quando já nem lembro mais. "Sabe aquele momento em que você não consegue dizer se sente alívio ou ojeriza?", havia questionado e a pergunta martelava junto com a enxaqueca. Foi quando percebi que não era nem uma coisa nem outra, o sentimento inominável era saudade.
Saí pra comprar a birita pela qual clamei desde o momento em que acordei. Fui a galope até o disk cerveja e as adquiri com a veemência de um viciado em crack. Quando cheguei, abri a primeira e estava quente, reclamei. Abri a segunda, desceu um pouco melhor. Abri a terceira, estava OK. A quarta, normal. A quinta, sem graça. E no final das contas, fora como se eu estivesse tomando Kaiser. Nunca beber tivera sido tão pobre de vontade como naquela noite fria e... prometi que seria a última vez que tocaria no assunto, porque nenhum sacudo tem o direito de brochar uma mulher que quer ficar bêbada.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

botão vermelho de emergência

Eu falhei. E não foi apenas nessa ou naquela coisa, deu tudo errado e tão errado que já nem sei se ainda estou no direito de ousar ter aspirações. Não me competem, não são pra mim, sequer me apetecem, me dão preguiça de vontade, sobretudo porque, de alguma forma, sinto que não sou mais digna delas. E às vezes desespera tanto que é como se estivessem me estrangulando e eu não conseguisse soltar um berro.
Queria mesmo que uma bomba caísse por aqui e pusesse fim a esse viver desengonçado, trôpego e inútil, mas isso não vai acontecer, não permitiriam. Se fosse pra acabar com todo esse sofrimento de uma vez, eu mesma teria que pôr as mãos na massa e fazer tudo sozinha, então seria mais fácil deixar de lado os planos de aniquilação em massa e me foder por conta própria, mas isso também não permitiriam.
Olhei através da janela e vi o tempinho enfadonho, cinza, com a chuva caindo indolente como tudo o que ocorre por aqui: devagar e enervante. E dói. Talvez seja isso o que, eventualmente, vai me levar à loucura. Sempre penso nessa coisa de sanidade, tentando desvendar os mistérios do limiar que separa a lucidez da maluquice total. Então fico imaginando se ainda não ensandeci ou se estou doida há muito tempo. A impressão que tenho é que, se a insensatez ainda não me dominou, ela é iminente e falta só pressionar aquele botão vermelho de emergência como os dos filmes, que servem tão somente pra solucionar qualquer problema que o roteiro não consegue fundamentar. É questão de apenas um empurrão pra eu mergulhar de cabeça no penhasco.
Senti o fastio da existência comprimida em um quarto e caminhei em direção à porta, minha visão se desfez e refez e então não era apenas uma única porta, mas duas. Cristo, como se já não bastasse o resto da vida, agora me pediam pra escolher entre duas malditas portas. Abri a da direita e um gorila de três metros ameaçou saltar sobre mim, com dificuldade a fechei e permaneci olhando a outra porta com desconfiança. O que mais falta agora? Abri a da esquerda e estava escuro, não enxergava um palmo à frente do meu nariz, então hesitei. Porém, acabei dando alguns passos tateando o chão no breu. Cambaleei na beirada do fosso e caí resignada, porque a queda é livre e é inevitável.
Assim é a loucura: ela avança a passos largos com relativa discrição mesmo no momento que a precede. Quem sabe seja esse mesmo o meu destino, andar por aí babando pelos cantos da boca e esparramando minhas roupas e calçados pelo prédio, tocando campainha da casa de desconhecidos, cheia de pasta de dente na cara e xingando os outros, como tem feito a minha vizinha. Eu a invejo pela ausência de remorso e culpa, pela possibilidade de poder ser livre e genuína cem por cento do tempo e cagar em cima do resto. E todo o mundo sabe que o conhecimento que as pessoas têm da sua piração é diretamente proporcional ao quanto vão encher o seu saco. Portanto, a insanidade acaba se revelando, de uma maneira ou de outra, a absolvição.      
Não consigo precisar o tempo que demorei pra alcançar o chão, no entanto, quando aconteceu, só houve um  barulho abafado como um grande saco de merda atingindo o solo de uma cavidade estreita, respingando o entorno e deixando um cheiro desagradável ali. Era só bosta quente e ossos quebrados. Era também a solidão absoluta. Foi quando percebi uma claridade intrusa que vinha de uma pequena passagem por onde eu deveria me rastejar para retornar ao ponto de partida. Tentei me mexer mas minhas pernas estavam quebradas tanto quanto podiam estar. Continuei estática, vencida e entregue como a boa perdedora que sempre fui, porque ali era também a paz e o sossego que me faltavam.       

sexta-feira, 6 de julho de 2012

detalhes ou i hope i die first

Com um ponto de interrogação luminoso e insistente na cabeça, eu permanecia encarando o espaço do site aonde eu deveria dizer quem sou eu. Pra que serve essa palhaçada afinal? Quem me conhece sabe como sou e quem não me conhece direito acha que sabe o que eu sou, visto que estão continuamente atentos ao que somos e não ao quem somos. Pensei que deveria me por a escrever alguma coisa impactante desse naipe, mas também não sou boa nisso.
A coisa se complicou porque sempre gostei de preencher as lacunas dizendo que sou esquisita pra caralho, quando o que me falta mesmo talvez seja talento. E
talento pode ser substituído por compostura, paciência, doçura, beleza, lucidez, inteligência, dinheiro e outras palavras de merda na lista dos itens que me escaparam na vida. E escaparam sempre com a relevância de quando alguém muda a posição do maço de cigarros e eu não percebo, porque são pormenores importantes apenas pra um decorador. Coisa que não sou e que meio mundo pensa ser. Particularmente, nunca tive habilidade, competência e atenção pra detalhes, aliás, nunca os entendi e eles nunca se entenderam comigo.
É como ouvir minha mãe dar ataque porque minhas roupas estão em cima da cama, é só um detalhe. Ou como ver gente que liga pro tênis que a outra pessoa usa, é só um detalhe. Detalhes são sempre absurdos. Normalmente funcionam como elos frágeis que alguns utilizam pra transferir seus preconceitos sigilosos a alguém posto que carregá-los sozinho é dificil, mas sempre esperando que esse alguém cumpra com maestria o papel que se designou arbitrariamente. É insano.
E é também apenas outro detalhe por dentro dos detalhes, de aspecto podre e do qual se desvia os olhos pra conseguir ostentar a fisionomia despretensiosa de paisagem e depois agir como quem diz veja como sou indiferente e confio no meu taco, mesmo que na verdade não passe de um merdinha inseguro e siga a vida se borrando de medo.
Sou uma mulher inflexível com gênio de cão, por isso nunca me dei bem com gente que se dedica a vender estereótipos sob o pretexto de detalhes e sempre bati de frente com quem tentou me empurrar essas demências goela abaixo. Mas, sobretudo, nunca tive um pingo de respeito por quem está comprando as idéias mais erradas o tempo todo porque tem receio de coisas insensatas. Seria melhor baixar as calças e ter uma diarréia em cima da letra de Metamorfose Ambulante de uma vez.

O ridículo é que o esforço para se dar o respeito é tanto que o esfíncter se aperta e então um charuto poderia ser cortado ali.
Sumariamente, esse esforço não passa de mera falta de argumento no momento em que não se consegue justificar as próprias escolhas. Um asno junta com uma dúzia de asnos pra convencionar uma dúzia de regrinhas pra apoiar suas decisões, outra dúzia de asnos vai passar a seguir e, sendo assim, a coisa irá crescer em uma progressão geométrica de razão doze. Isso é taxa de contaminação de uma peste bubônica.  
Os hábitos de quem acredita ser caso de vida ou morte se justificar o tempo todo, justificar todo o tempo qualquer coisa e simplesmente se vê incapaz de fazê-lo, são tão mecânicos e obsessivos que devem até causar LER. Não há razão de ser em tanto esforço prosseguido e repetido pra viver, principalmente se for pra existir de uma maneira tão sufocante, com as pessoas sentadas nos seus espaços minúsculos, todas reprimidas, vazias e assustadas mas ao mesmo tempo orgulhosas e satisfeitas por estarem assim. Eu espero morrer primeiro antes que isso se abata sobre mim.

domingo, 1 de julho de 2012

a verdade nos olhos dos outros é refresco

Você é uma puta!, o cara esgoelou no meio da multidão quando dela ouviu um não. Era uma loira de cabelos curtos e bem cortados, alta, esguia, com tudo no lugar, usando um batom vermelho e um vestido azul marinho não muito curto. Estava bonita e aquela atitude não passava de despeito. Ela o fitou de cima a baixo cinicamente. O sujeito era uma gracinha mas fodia mal, tiveram um caso de uma noite só tempos atrás. Sem pestanejar, retribuiu com desprezo mas você não soube me comer, seu merda!, em som uníssono e a fim de que todos os amigos dele a ouvissem. Riram, eram igualmente previsíveis.

O problema de quem se superestima e se leva a sério demais é justamente este. Quando as crenças são deitadas abaixo, o que resta são os escombros daquilo que já fora catedrático. Por esta razão, quase ninguém gosta da verdade, aliás, a verdade só é admitida até certo ponto, somente até aonde não se é afetado por ela porque ridiculariza em níveis que o ego não suporta. Muito embora a consciência agradeça, mesmo que ela pouco importe no pesar da balança. Consciência é desnecessário quando se veste uma roupa legal. Mais ainda quando você, com sua roupa legal, pode arrumar alguém para foder. Para o inferno com a consciência se o teatralismo te rende uma gozada numa noite aleatória. Consciência e verdade são atraentes apenas à distância. As pessoas as colocariam em prática caso ambas não as arreganhassem e as tornassem criaturas tão estúpidas.

Consternado com o que acabara de ouvir, num ímpeto tipicamente masculino de auto-afirmação, pegou no saco dizendo que ela havia gostado, primeira vez que diziam que seu desempenho era lastimável. Meu filho, isso que você tá segurando não é uma barra de ouro, não vale porra nenhuma, pode soltar. Queria cobrir aquela vagabunda de porrada ali mesmo, queria quebrar seus dentes e quem sabe ela pagaria um boquete melhor do que aquele que recebera. Agrediu-a mentalmente de todas as maneiras possíveis porque não tinha culhões para botar em prática, especialmente com dois seguranças trogloditas por perto, que acabaram precipitando o encolhimento da personalidade de machão dele.

Nunca entendi a aversão das pessoas à verdade, principalmente porque com ou sem ela continuamos um bando de idiotas. A diferença é que sem a verdade se é um idiota pretensioso e arrogante. Está bem ser um idiota à sua maneira, nisto não há problema algum - eu mesma o sou - contanto que se assuma idiota ao invés de esconder atrás de frases retardadas e motivacionais para aparentar ser algo maior do que é. Ame o próximo, seja pacífico, faça o bem, eles ladram por aí à medida que excluem, fingem, fofocam, enganam e dissimulam. E este é um recurso à altura de quem o pratica, coisa de gente pequena e pobre de espírito.
Por isto, passei a admirar os idiotas convictos porque, apesar de tudo, eles têm algo próximo à coragem neles. E eu gosto de coragem. Ao passo em que a mentira sempre andou de mãos dadas com a covardia. É o medo desta qualquer coisa, que apenas quem mente sabe o que é, que motiva a farsa e, normalmente, se revela algo débil no final das contas. Afligir-se pela reação alheia é meio ridículo. Obviamente, se você disser que acha tal troço uma bosta, ninguém irá enfiar um pedaço de madeira no seu cu. Portanto, não há o que temer.


Ela deu de ombros e nunca mais tocou no assunto. Ele remoeu por meses. E toda vez em que ia comer alguém, aquele pensamento aterrador de que, talvez, a mulher fosse pensar a mesma coisa estava o consumindo. Passou a dormir mal porque um sonho se repetia durante várias noites da semana: no seu abatedouro, ele arrancava as roupas da mulher, acariciava os peitos e a bunda dela mas seu pau não queria subir de modo algum. Ele acordava transpirando e todo mijado. Levantava da cama e, na ponta dos pés, buscava uma roupa de cama limpa para trocar. Ninguém jamais poderia cogitar que um homem de vinte e cinco anos andava urinando no colchão como se fosse criança.

Somos quem fazemos ser. Contudo, há quem opte pelo caminho mais fácil, que é sempre o que requer pouco esforço mental e implica seguir as regras seculares, ocupando o tempo de forma maníaca para não perceber a inutilidade das ações diárias e olha, esta realidade quando revelada pode levar à loucura. A fórmula é velha e simples: idiotização no lugar da histeria, logo, querendo ou não, torna todo mundo ainda pior. Zumbis conformados, dizendo amém e seguindo o fluxo pois falaram que era assim que tinha que ser. Não foi dada nenhuma justificativa plausível mas não se questiona absolutamente nada. E lá vem de novo aquele silêncio conivente e tão desagradável como a merda grudada na sola do sapato, seguido de sorrisos e gestos subservientes que inoculam o veneno contido neles.
E então eles vêm com aquele papo de "você deve ser agradável sempre", sem apresentar nenhuma razão ou qualquer motivo lógico. Querem que você seja agradável sobre todas as coisas, amável até com uma pedra. Pois eu digo que esta gentileza despropositada é apenas outra mesquinhez social que alimenta comportamentos perversos entre cada um de nós. Incrível como conseguem passar o tempo todo sorrindo como debilóides, acenando mecanicamente, abraçando uns aos outros, de bem com a vida e, mesmo que estejam levando no rabo, continuam a sorrir, a acenar e se abraçar tão forçosamente que já não sei se isto é sadismo ou ambição extrema.
O primordial é manter sempre seus narizes empinados e seus orgulhos intactos. Mesmo que raspem o cu com a unha para economizar papel higiênico, mesmo que sejam motivos de chacota, mesmo que sejam tapados e sem imaginação, nunca o reconhecerão, nunca dirão que é verdade, ao contrário, dirão que quem os questiona, mente. Dirão que quem está a expô-los não passa de um frustrado e amargurado. Esta é a gênese da escravidão mental. E como são medíocres. E pior do que medíocres, são fracos. Fracos de vontade, fracos de princípios, fracos de personalidade, fracos de caráter. Confesso que eu seria capaz de sentir pena se estas pessoas não me irritassem tanto.


A situação virou uma bola de neve e ele foi ficando cada vez mais nervoso, inseguro e ansioso. Já não queria encarar noitadas, evitava beber porque achava que ia brochar, começou a prestar atenção em anúncios na internet sobre como aumentar o pênis. Tomava banho e lavava seu instrumento meticulosamente enquanto murmurava "meu precioso". Cara, você tá ficando paranóico, seu amigo lhe disse certa vez. Virou uma obsessão. Sua vida passou a girar em torno do próprio pinto. O caso era preocupante.
Até que em um dia, o que ele mais receava acabou acontecendo. Uma pobre qualquer, sentindo-se incapaz de excitá-lo, tentou de tudo. Ao cabo de meia hora, ambos desistiram e se sentaram meio distantes. Isso nunca me aconteceu antes, ele disse humilhado. Ela respondeu que aham, tudo bem, sexo não é assim tão importante. Mentira, lógico. Acendeu um cigarro e ficou ali enquanto assumia a função de psicóloga do rapaz. Seus problemas de ereção o levaram a procurar um proctologista que o encaminhou a um terapeuta.

terça-feira, 26 de junho de 2012

o momento que antecede a pancada

(Ilustração: Claudim Melo)


Não tinha certeza se havia sido o tédio ou o desencanto que a conduzira naquela empreitada, mas lembrou que se sentiu repentinamente disposta a chutar o pau da barraca no conforto do lar. Teve um lampejo perigoso e recorrente que sempre antecede estes momentos: uma lembrança vertiginosa e tão boa quanto uma trepada. Deu uma golada generosa na cerveja e se virou para alcançar a bolsa, remexeu seu conteúdo à baixa luz até que encontrou um pequeno recipiente cilíndrico, admirando-o e o segurando firmemente contra a iluminação fornecida pelo monitor. Tomou outro gole, acendeu um cigarro e continuou a flertar com o potinho, cheia da convicção que nunca tivera sobre nada na vida, aquela era sua única certeza pois era tangível. Soprou a fumaça e, como de costume, regurgitou um pouco de ar que emendou em um arroto quente. Abriu uma de suas gavetas bagunçadas e começou a vasculhá-la com certa apreensão enquanto bebericava e tragava nervosamente.
Seria apenas por diversão, afinal quem quer a porra de um vício? Deste pensamento aparentemente encorajador, acresceu-lhe uma sensação de desconforto que percorreu toda a extensão da espinha, seguida de uma idéia crescente e devastadora, porém hesitante, de foda-se o mundo que abarcou sobre seus ombros curvados. Da gaveta finalmente conseguiu extrair um cartão, então se levantou e esticou os braços para aliviar aquela pequena tensão que se acumulara nos seus membros.
Enquanto andava de lá pra cá em busca de uma superfície apropriada, lembrou-se de verificar as persianas e até mudou a música, porque a viagem seria catastrófica caso Radiohead continuasse ecoando pelo cômodo acizentado em nicotina. Pensou que queria mesmo era conviver com depravados convictos e com desgenerados. Queria conviver com aquelas vadias sujas e vulgares, com viciados que venderiam até mãe, com idiotas superficiais e suas conversas rasas, com pessoas inseguras, com mulheres rancorosas e oportunistas e com homens impotentes. Queria lidar com tudo aquilo que é vil e que é assim sem remorso. Mas espere, ela já convivia com todo o lixo da humanidade que se refugiava covardemente em carcaças de santos profetas e cordeiros. Sentiu-se como a idiota que dorme com o inimigo.
Encostou a cabeça na porta para se certificar de que todos dormiam. Não podia ser pega com o nariz na botija de modo algum. Pensando bem, era a adrenalina do segredo que a guiara por anos a fio na prática do tiro esportivo e, talvez, fosse a única coisa que a mantivera na linha e longe de problemas maiores com as drogas. Gostava de usar quase tudo e quase tudo misturado, principalmente maconha, cocaína e LSD, sempre acompanhadas de qualquer bebida alcoólica. A birita é o que ela chamava de cereja do bolo. Funcionava como o agente catalisador da explosão quando combinado com tudo que ela costumava meter para dentro do corpo sem perícia. Naquela noite, a cerveja seria a sua nitroglicerina.
Era uma mulher incapaz de suprir as expectativas alheias e sabia disso. Sabia também que era franca o suficiente para admiti-lo e dizê-lo a quem quisesse ouvir. Eu não valho nada assim como todas as outras pessoas, disse baixinho para si. Sentiu, depois desta pobre reflexão, todo o peso da injustiça do mundo nas suas costas pois as cobranças que sofria eram desproporcionais ao que lhe era oferecido. Por quê caralhos diziam-lhe sempre sobre a diligência de se abaixar as expectativas quando o que exigiam dela era altíssimo? Particularmente, criá-las nunca constituiu o problema principal, mas sim o momento em que pediram que eu depositasse as minhas fichas, prosseguiu seu monólogo como quem tivera sua força exaurida e estivesse esgotada demais até para falar. Isto não passa de uma visão simplista das circunstâncias e só favorece quem é sempre alguém pela metade. É a cultura cômoda de nego mais ou menos. Mais ou menos honesto, mais ou menos sincero, mais ou menos fiel, mais ou menos escrupuloso, mais ou menos verdadeiro e, se houvesse meios, seriam mais ou menos gays e mais ou menos grávidas. Arre, estou-me nas tintas com estas metades!, resmungou.
Nunca tivera muita paciência para qualquer coisa e aquela espera pela oportunidade ideal já estava lhe dando no saco. Mas ao perceber que o som que advinha do cômodo ao lado era apenas um ronco cansado e abafado pelo ruído massificante da televisão, sentiu-se segura o suficiente para reduzir ainda mais a sua expectativa de vida naquela madrugada fria e enfastiante. Da carteira retirou uma nota velha de cinco reais e que, aliás, parecia já ter sido usada para a mesma finalidade por outras pessoas que nunca conheceria. Pegou uma capa de CD e preparou duas carreiras paralelas com aquele pó amarelo. Encaixou o canudo no nariz e inspirou. Ahhh, emitiu com prazer, fungou diversas vezes e repetiu o gesto com a narina oposta.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

aquela sujeita devia ter algum problema mental

E devia mesmo. Até o ponto em que se auto-promovia com seus modos púdicos e castos, com a sua ingenuidade forçada, estava tudo bem. A coisa se complicou mesmo quando ela resolveu que tinha que excursionar nas minúcias das questões sociais, argumentando que violência não é a resposta logo após ter afirmado ser admiradora do Che Guevara desde quando assistiu "Diários de motocicleta", o cubano mais famoso do mundo, ela disse. Ele era argentino, tá? Mostrou-se contra o aborto e a favor da pena de morte, inclusive. Entendi, conte-me mais sobre seu lado humanista, estimulei. Idéia pela qual vim a me arrepender só mais tarde.
É que a vida é tudo para mim, ela proferiu. Sério? Não me diga, respondi em um tom reticente, e como você valoriza a vida em geral? Ah, eu faço sempre o bem sem olhar a quem... fez uma pausa para o suspense, terminando com um "mas quando posso né?", e sorriu como se tivesse tido a sacada mais genial do planeta. Pode crer, para fazer o bem tem que haver disponibilidade na agenda, certo? Ela franziu as sobrancelhas com um ar confuso e falou que claro, tem dias que tô muito apressada, fazendo as minhas coisas e nem presto muita atenção. Então não é sempre que você faz o bem, garota. Ela gargalhou feito uma retardada como se eu tivesse tido a sacada mais genial do planeta.
Simplesmente me é inconcebível esta necessidade atual de ter que ser sempre bom, não no sentido de ser altruísta e solícito gratuitamente sem esperar gratidão ou retorno, mas no sentido de querer ser bom somente para se tornar melhor do que o outro aos olhos de terceiros. Há duas possibilidades, uma assume a forma de encarceramento, tal qual uma algema que se mostra travestida de virtude e que, no entanto, não tem outra função senão a de nos abreviar individualmente a cada dia. A segunda se enquadra em uma espécie de ritual do acasalamento moderninho, porque hoje em dia esta hipocrisia se tornou o novo feromônio para a cópula. Ostentações sociais contemporâneas para quem busca parceiros sexuais.
Olhando-a daquele jeito, me senti péssima pelos deboches porque ela parecia se esforçar para mostrar que realmente estava no caminho, que queria se importar com alguma coisa e, quiçá, estivesse apenas perdida em meio às doutrinas sociais impostas, vindas de todas as vertentes, como flechas de merda atravessando a sua frágil cabecinha.
Entendo que as pessoas estão cada vez mais confusas com a multiplicidade de papéis que nos é exigida, com a velocidade com que tudo nos atinge sem que saibamos de onde vêm os ponta-pés. Entendo também que muitas delas já não conseguem escolher o seu caminho, se correm para o misticismo ou ateísmo, partidarismo ou apartidarismo, pró-ambientalismo ou progressismo, indiferença ou revolução e que as informações são propagadas sem que tenham tempo para filtrá-las e digeri-las. Divagando tudo isto em segundos, eu quis acreditar que este era o caso pois agora eu a compreendia e era complacente.
No momento em que estava perto de me transfigurar no melhor de mim, a doida maluca tem um repente e solta que a cada seis meses doava o próprio sangue, aumentando o tom de voz a fim de que todos no entorno pudessem ouvi-la. Espero que ela não tente doar o sangue de mais ninguém, pensei. A desgraçada não parava mais! Dizia amar e ter fé em Jesus Cristo e que estava interessadíssima na Kabbalah porque era muito revelador. Quem estava ali dirá ter ouvido a Madre Teresa de Calcutá com mal de Alzheimer.
Não tinha jeito, a bendita era mesmo uma dessas bem comuns que costumam falar qualquer bosta mística que lêem na internet como se tivessem achado o cálice sagrado, a filosofia suprema de vida, a verdade absoluta e o segredo da existência. Não entendia a porra toda e mesclava toda a porra, numa mistura de arrepiar. À medida que a pobre ia se endireitando na cadeira, exaltando-se e discursando cada vez mais alto, eu ia me afundando até quase ir para debaixo da mesa.
Se ela não era a favor de aborto e curtia pena de morte, se amava Jesus e Kabbalah ao mesmo tempo, se não sabia discernir nada de merda nenhuma, que pelo menos fosse tomar no cu pra lá com dignidade, tendo em mente que talvez seja melhor mesmo se limitar a maquiagem, bolsa, cabelo, sapato e noitadas ao invés de bancar a santa às vésperas da canonização. Não tenho a menor paciência para nego que, vez ou outra, empolga e sai para fazer passeios fora do eterno comercial de margarina em que está aprisionado, apenas para experimentar aventuras da pesada no mundo real.
Senti vontade de morrer. Senti vontade de enfiar meu copo na goela dela antes que eu morresse. Sempre acabo decepcionada pela minha fraqueza que culmina em lapsos de empatia e esperança, servindo tão somente para me desencantar com a humanidade cada vez mais.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

blues, chuva e uma estátua grega impertinente

Eu estava espirituosa naquele dia. Talvez fosse a cerveja. Talvez fosse a maconha. Talvez fosse a atmosfera diferente. Não importa porque qualquer coisa era melhor do que Juiz de Fora, um lugarzinho débil e candidato à metrópole em que o cheiro de merda de cavalo paira no ar. É sempre esse odor que me faz recordar da Princesinha de Minas, seguido da imagem de bosta fresca esparramada no asfalto pelos veículos. Engraçado como a Manchester Mineira insiste em manter seus hábitos rurais, enquanto tenta dissimulá-los porcamente na tentativa de proporcionar um aspecto de cidade grande. Logo rejeitei estas memórias desgostosas da minha terra, pois realmente estava bastante espirituosa naquele dia e, pensando bem, talvez fosse mesmo culpa da maconha.
Lá pelas tantas decidimos cair no mundo. Circulamos por toda a cidade em um tour lisérgico, porém agradável, olhando através das janelas do carro e observando todo mundo se amontoar nos bares para fugir da chuva fina e chata. Eu só queria tomar cerveja tranquilamente e bater papo enquanto curtia um som de qualidade. Então resolvemos parar em um lugar que nos pareceu bacana à distância. Ao chegar no estabelecimento mal pude acreditar no que vi, a creche estava à solta e houve um choque entre gerações, senti-me com cem anos de idade ou mais.
Naquele momento a chuva já caía torrencialmente e não havia meios para que saíssemos dali. Resignei-me e comecei a me divertir, primeiro com as vozes irregulares dos moleques e depois com histeria hormonal das putinhas adolescentes loucas para dar. Pareciam aves amontoadas em um galinheiro minúsculo, aonde todos se esbarravam involuntariamente, o que contribuía para o tesão desmedido acumulado dentro dos seus corpos ainda em formação. Era hilário e eu não conseguia tirar meu sorriso cretino da cara.
Como sempre ocorre quando gente nova está envolvida, é tudo um enjoamento sem fim, porque simplesmente nego não sabe sentar numa mesa de bar sem fazer cagada. Para controlar a criançada e não ter prejuízo, era necessário que adquiríssemos as fichas antes. Ao chegarmos no caixa, senti uma leve espetadinha no ombro e me virei, dando de cara com um bombadinho. Era aquele típico retardado que acredita piamente que roupas são capazes de anular uma cara de pobre aspirante à burguês ou de elevar um feio ao posto de galã. Mas tudo bem, sou compreensiva com este ranço de Power Ranger que alguns imbecis ostentam até certa idade.
No entanto, quando me dei conta, a situação havia tomado uma proporção que diligenciava um problema sério e eu não fazia a menor idéia do que estava ocorrendo. Ao despejar meu olhar inquisitivo sobre ele, como quem diz mas que merda você está fazendo, seu idiota?, reparei que ele estava bêbado igual a um porco, dando um passo para frente e dois para trás. A surpresa veio quando voltei a encará-lo e vi que a fuça dele estava retorcida e parecia estar tudo meio fora do lugar, boca no queixo, nariz na bochecha, olhos afastados. Quase um quadro cubista. Tenho certeza de que ele precisou tomar apenas cinco cervejas para ficar naquele estado.
O problema é que o moleque também havia espetado com um palito de dente uma amiga e encoxado a outra. Claro que ele estava sorrindo na cara do perigo, eu pelo menos não encararia uma briga física com nenhuma das duas em hipótese alguma. De qualquer forma, eu estava bem humorada demais para me importar com adolescentes punheteiros brincando de gente grande, então pus-me a gargalhar da situação.
Será que ele tem o pinto pequeno ou só está a fim de dar o cu?, pensei e ri, o negócio é o seguinte, continuei, acredito que em ambos os casos, estando a procura de uma vagina ou de um pênis no meio da bunda, as pessoas têm que se comportar de outro modo ou não conseguirão ter fodas que valham a pena, escangalhei-me de rir mais uma vez, agora elevando a irritação do pobre a um grau espetacularmente divertido. Eu não conseguia mais parar.
Para ser sincera, eu fiquei no aguardo de uma potencial voadora de dois pés que nunca me atingiu, porque ele se mantinha à uma distância segura pois já havia sido ameaçado - e não foi por mim. Na real, o moleque fazia o tipo corajoso que vocifera atrás dos outros e se borra todo quando a situação aperta. Não chegava a ser digno de pena porque era um débil mental, mas recebeu toda a minha compaixão. Afinal, é este o sentimento que aflora quando um homem não sabe lidar com a sua síndrome de estátua grega, vendo-se obrigado a utilizar este recurso de palhacinho para chamar a atenção de mulheres mais tapadas. Poderia dizer algo do tipo olha meu filho, ser grande e ter o pau pequeno não precisa lhe causar tanta aspereza, é só saber utilizá-lo corretamente e outros conselhos que fazem a linha tia velha solteirona, mas isto seria inútil.
Nos restavam duas fichas que, felizmente e antes que as coisas saíssem do controle, conseguimos trocar, reavendo o dinheiro para podermos ir embora. Provavelmente, o protótipo de babaca continuou ali enchendo o saco até da própria sombra com a desgraça do palitinho de dente. Coitado, além de mongolóide, era também um leitão.
Fomos do bar juvenil para um show incrível de blues, aonde a chuva adquiriu um caráter redentor, lavando minha alma e curando parcialmente o meu porre. Ao chegar em casa, enquanto as pessoas não paravam de aparecer por lá, eu fumava e continuava bebendo como se não houvesse amanhã - e ninguém poderia assegurar o contrário -, trocando palavras amenas e fugazes. Estávamos em paz uns com os outros de uma forma cândida e evidente, estávamos em paz com o mundo, em paz com o que era próprio do mundo. Gostava daquilo. Gostava, sobretudo, daquela condição despreocupada e displicente, aliás, poderia viver até o final dos meus dias daquela maneira para ter a possibilidade de ser razoavelmente feliz.
Acordei satisfeita, apesar da ressaca monstruosa que me deixou sob os escombros da minha existência.

terça-feira, 22 de maio de 2012

sou muito escrota mas vocês são vergonhosamente covardes

(Ilustração: Claudim Melo)


Sobre a minha evidente deficiência emocional já procurei explicações até na astrologia, capricorniana, você sabe como é... o fato é que eu tenho um problema sério para exprimir sentimentos. Perdi a conta de quantas vezes quis dizer um mísero te adoro mas não passei de um olhar indulgente e ninguém que o tenha recebido entendeu o que eu pretendia com ele. Devolveram-me um olhar frustrado seguido de uma cara de cu e quem ficou frustrada e com cara de cu, no final das contas, fui eu.
Minhas demonstrações de afeto sempre acabam atravessadas na goela, como um nó ou um vômito ou um espinho de peixe, não necessariamente nessa ordem. Sou uma escrota. E não há nada que eu não tenha tentado que fosse capaz de reverter meu temperamento retraído e que muitas vezes soa como frieza, mesmo tendo um turbilhão de emoções pulsando por dentro, elas simplesmente ficam entaladas. Sou uma escrota emocionalmente constipada. É como se eu tivesse comido demais e não conseguisse cagar, por isto vou inflando como um balão até que estouro e os dejetos respingam em quem estiver por perto.
Acabei me tornando um ser humano preenchido pela sensação de impotência, porque as pessoas necessitam de provas concretas e eu só consigo fornecer evidências, tão subjetivas quanto a própria vida. Não sei o que os outros querem de mim, se é que querem alguma coisa, e se querem, deve ser algo que não tenho competência para prover ou até hoje não compreendi o que é.
E entenda, meu estoque de amaciantes de ego é restrito, aliás, sou a favor de ações ao invés de palavras sublimes que vão se esvair com o vento e perder o valor na primeira malícia de oportunidade que acarrete algum deslize meu. Porque vou cometer erros e magoar os outros, porque vou ser sincera demais e as pessoas nunca estão preparadas para isto, porque vou ser perfeccionista demais. Porque esta é a minha natureza: ser rígida comigo e com as pessoas. Então vou ser crítica demais, vou ser melancólica demais, vou reclamar demais, vou encher a cara demais, principalmente quando estiver de mal com o mundo e quando estiver de bem com o mundo também.
Enfim, este comportamento une tudo aquilo que a sociedade reprova. Porque os vínculos emocionais, em sua maioria, precisam de coesão e esta coesão só é possível através de meias-verdades, algo com função similar à da argamassa entre azulejos mas que se deteriora com o tempo e você tem que estar sempre ali reforçando o rejunte. No entanto, somente elas permitem que os laços interpessoais se estreitem, ao contrário das verdades desnudas, que expõem aquele pedacinho particular de cada um que ninguém quer que saibam, que todos odeiam secretamente e, por esta razão, cismam que têm que escondê-lo do mundo no desespero da necessidade psicótica de aceitação.
Afinal, todos querem pertencer a alguma coisa e esta é a base da alegria falseada da humanidade: ignorar verdades para conseguir simular felicidade. Todavia, pertencer seria impossível caso as relações não fossem construídas sobre dissimulações, do contrário, os outros te conheceriam a fundo nos seus piores aspectos - aqueles que nos deixam mais próximos dos animais que somos - e isto implicaria rejeição.
Não diga que seu amigo é feio, diga que ele tem uma beleza diferente que apenas pessoas sensíveis conseguem enxergar. Não diga que seu amigo está gordo, convide-o com sutileza para ir à academia com você. Não diga que seu amigo é burro, diga que ele é dotado de um tipo peculiar da inteligência prática, de modo que a recíproca ocorra em um silêncio cúmplice e conveniente.
Perceba que estas meias-verdades não passam de eufemismos hipócritas disfarçados de complacência, não tendo outra função senão jogar para debaixo do tapete o pavor da solidão. Este hábito medonho, que insistem em não chamar de falsidade, nos é empurrado como um dever cívico. Renegá-lo ou não, portanto, é uma tarefa individual, já que em algum momento você ou seu amigo feio, burro e gordo começará a parecer tapado. Está nas suas mãos.

terça-feira, 8 de maio de 2012

era uma vez um homem que agia como um homenzinho

Tomei um gole generoso da minha cerveja e o observei enquanto ele tentava me diminuir com algumas palavras rudes e pobres. Meu bem, eu não faço a menor questão de que os outros gostem de mim porque ninguém tem essa obrigação, disse-lhe, assim como eu também não tenho a menor obrigação de gostar de todo mundo, aliás, eu não suporto a maioria das pessoas que conheço, concluí em voz alta. Será que é complicado entender que não me insulto com a falta de estima dos outros?, eu pensei enquanto olhava fixamente no meio da sua cara estúpida. Ele esbugalhou aqueles olhos marrons ficando com um aspecto retardado, então me vi obrigada a rir.
Não me senti babaca por dizer aquilo porque não há babaquice alguma no fato de eu não ter uma ínfima disposição para lamber o saco alheio. Todos são assim e poucos confessam. Besta é quem pratica uma devoção exagerada às pessoas, muitas vezes até as odeia e, ainda assim, insiste em querer agradá-las mesmo que isto lhe custe a melhor parte da sua existência.
Eu continuava ali encarando o infeliz com uma curiosidade inocente, à espera da próxima ação e ele não conseguia resolver se enfiaria a mão na minha cara, ou se iria embora, ou se me xingaria de qualquer outra coisa vulgar. Eu não me importaria mesmo e no fundo ele sabia disto, portanto, não havia nada que ele fizesse capaz me retirar daquele estado de profunda indiferença com o que achava ou deixava de achar. Eu simplesmente cagava para as opiniões dele.
Senti dó do sujeito ao ouvi-lo se atropelar para cuspir um papo de "você é um lixo", no qual nem ele acreditava porque não me conhecia, mas que evidentemente havia elaborado na noite anterior e tivera sido muito mal planejado ou, talvez, a pressa para sair por cima da situação tivesse ocasionado aquela má execução.
Era um camarada engraçado nos seus modos. Fazia o tipo que ensaiava tiradas épicas em casa durante seus monólogos solitários, depois de se admirar em frente ao espelho, fingindo ser o macho alfa do pedaço. O típico sonhador sempre dentro do seu quarto abafado, com cheiro de sêmem seco nas páginas de revistas e decorado pela mãe com aviõezinhos. Debochei interiormente.
Nunca enxerguei virtudes nos submissos por escolha pessoal - e acredite que não é um pensamento exclusivo meu. Não há méritos em abdicar da própria consciência por outra apenas para ser o que os outros querem que você seja, isto te torna apenas covarde, especialmente se estes outros forem um bando de idiotas. Mas "idiotas" se tornou uma palavra vaga aqui, enfim, permita-me ser concisa: idiotas são aqueles que se sentem ameaçados por idéias distintas das que eles têm.
A humanidade cansou de nos conceder provas de que as idéias são perigosas, sobretudo porque reduz idiotas ao tamanho real que eles têm e estilhaça toda a ilusão que precisam manter para que tenham algum valor dentro das relações sociais. Quer seja para treparem, quer seja para serem bajulados nas noitadas, quer seja para curarem traumas de infância ou, quiçá, tão somente para esconderem aquele pedacinho obscuro da personalidade que detestam. Em suma, idiotas são inseguros e precisam menosprezar alguém para que se sintam melhores.
Afinal, sexo sozinho é monótono, não ser importante causa inveja, ter sofrido perseguição provoca rancor e não se aceitar corrói a cachola. A única coisa que querem é que você os enxergue como algo maior do que são, como se os vislumbrasse através de uma lente de aumento. São estas mesmas idéias que jogam por terra a visão hiperbólica de que necessitam, caso contrário, não foderão ninguém, não terão seus egos masturbados nas noitadas e se sentirão tão pequenos a ponto de esta insignificância doer, mesmo que não o admitam. E não o farão.
Mas aquele cara era um homem tão comum, tão como a maioria: com o cu no lugar da boca, uma azeitona no lugar do cérebro e, apesar de gostoso, não passava de um ser humano ordinário pela presunção. Eu sentia uma tremenda preguiça dele. Bocejei. Percebe o que você está fazendo?, perguntei, o quê?!, ele resmungou como um cachorro surpreso, você está me dando sono, respondi. Riram dele e, naquele momento, recebi um olhar furioso de orgulho ferido.
Sei que não são todos assim e que existem exceções às regras: as amebas, por exemplo. Estas realmente não têm a menor idéia do que se trata ou do que acontece no mundo. Todavia, estou a falar de gente. E tem gente que acha isto bonito. E tem gente que se sente superior. E tem gente que pensa ser importante. E tem gente que não raciocina e fala demais. Gente comum continuará se sentir superior. Gente comum continuará a pensar ser importante. Gente comum continuará achando isto bonito. O problema é que essa gente comum não entende que "quem fala muito, dá bom dia a cavalo" e neste caso, é melhor torcer para que o cavalo não seja eu.
Continuava olhando aquele rosto retorcido pelo ódio enquanto bebia minha cerveja, agora razoavelmente gelada, o que era a única coisa que realmente me incomodava. Além de ser um babaca, havia estragado a birita, ato indesculpável que o tornava merecedor de um espancamento por aquele delito. Ele esboçou qualquer pensamento que, num lapso de prudência suprema, preferiu não dizer e rachou fora do alcance da minha visão. Terminei com o resto da long neck e fui mijar.

domingo, 1 de abril de 2012

crônica de boteco

Já era tarde quando aquele homem desgraçado resolveu que deveria meter a cara no mundo. Botou a camisa de botões pra dentro da calça amarrotada, calçou seus sapatos velhos e carregou a carcaça que habitava pra rua. Se levasse um livro debaixo do braço, poderia ser confundido com um pastor. A barba, escassa em alguns pontos, estava porcamente feita e observando a roupa amassada, parecia um evangélico que havia saído da boca da vaca.
Entrou em um botequim tão imundo quanto os frequentadores e se deparou com todo aquele lixo social reunido. Eram casos piores de indigência e diferentes misérias particulares. Não passavam de desajustados que abdicaram das suas consciências. A vida noctívaga é o consolo das almas arredias e exasperadas pela realidade assassina. Estava, portanto, entre irmãos.
Ele olhava pra um cara velho de aparência, como quem a existência cuidara de acabar prematuramente, que penteava o cabelo cuidadosamente para o lado, numa tentativa falha de esconder a calvície precoce. O maluco mandava um copo de vodka goela abaixo como se fosse água, sem sequer exprimir qualquer expressão de esforço, enquanto vislumbrava a vagabunda que preteria pra aquela noite.
Rezou secretamente, com a fé que nunca teve, pra morrer antes de chegar a esse ponto deprimente na vida de um homem, quando não se consegue demonstrar virilidade a uma mulher senão através da tolerância etílica. Gostou de lembrar que seu pau ainda funcionava e então abriu um sorriso malicioso de canto de boca.
Ao passo em que examinava o ambiente com curiosidade, ia tomando avidamente a cerveja que pediu. Sentiu uma fisgada no estômago e se deu conta de que não lembrava da última vez em que havia comido algo minimamente decente. Olhou para o balcão e teve de escolher entre ovos coloridos, torresmos cabeludos e pastéis de carne.
Depois de mudar o pedido duas vezes, optou pelos pastéis frios e velhos. Abocanhou o primeiro pedaço enfiando mais da metade pra dentro da boca empurrando com a mão. Numa outra mordida, terminou o serviço engolindo sem mastigar direito. A impressão é de que aquela era a melhor comida do mundo. 
Olhou pra trás e viu uma jukebox. Levantou-se e caminhou até ela como um derrotado. Estava exausto demais pra colocar uma perna na frente da outra seguidas vezes, mesmo por uma distância curta, sem ficar meio ofegante. Viu-se diante de outra circunstância que exigia uma deliberação importante, sendo obrigado a escolher entre Reginaldo Rossi, Fausto Fawcet e Fábio Júnior.
Optou pelo Reginaldo Rossi. Depois pelo Fábio Júnior. Depois pelo Fausto Fawcet. Daquele jeito ia gastar a grana toda na jukebox porque não conseguia nem resolver a música que queria ouvir. Nunca fora um sujeito determinado, longe disso, era um desses caras mal resolvidos pra caralho e a simples circunstância de vestir uma cueca se transformava num dilema desgastante. Não passava de um homem fraco e débil.
Sentou-se e bebeu mais enquanto via, com indiferença, o homem impotente e de aspecto gasto arrastar a puta de meia idade pra algum beco escuro e com cheiro de mijo. Bebeu outro copo enquanto reparava com indiferença nos que traficavam livremente. Meteu pra dentro todo álcool possível junto com a mágoa que tinha, misturada com a amargura da vida. Ele viu que aquilo era toda a tristeza do mundo, toda a podridão do mundo, todo o escárnio do mundo e que ninguém se importava...

terça-feira, 27 de março de 2012

quer me foder me beija

Quando o papo do sujeito se encaminha rapidamente pro "qual é a boa?", já é o suficiente para me brochar. Bate uma preguiça preliminar porque o assunto não irá se desenvolver para mais além, principalmente quando a pergunta cretina é feita em uma terça-feira às sete horas da manhã. Tem gente que enfia na cabeça essa necessidade de ter que se divertir o ano inteiro. É compreensível que nego fale sobre isso durante os finais de semana, mas é que parece que nos outros dias não acontece nada no mundo, aliás, o mundo é o final de semana. O cara começa a agilizar os preparativos na segunda e vai alardeando até chegar a sexta. Nesse meio tempo a função é pentelhar os outros.

- Não sei qual é a boa.
- Po, to sabeno d uma parada q vai ser top!!!!!1 kkkkkk
- Ah, é? O quê?
- Funk na W100, vai enche concerteza..
- Nossa, com certeza vai ficar ótimo...
- Po, vai c top! qr convite???????/
- Brigada mas nem vai rolar, já combinei outra coisa.
- Po, mais vai c mto top!!!!!!
- Eu sei que vai ser TOP. Você já me falou isso 3 vezes.
- Mais vai c top, cara! Vc tem que ir pq, po, vai c top!

Pensa bem num indivíduo que justifica uma frase com "vai ser top" e fala isso como se fosse um argumento de peso e inquestionável. É aquele tipo de imbecil que, além de não saber escrever, é incapaz de entender a ironia e a complicadíssima frase "já combinei outra coisa". Além do mais, esse deve ser o único assunto que o cérebro do infeliz consegue comportar e se a retórica for um pouco mais elaborada, pode ter certeza de que vai dar tilt.

- Então, eu sei que vai ser óóóótimo e tudo, mas já combinei outra coisa e não rola de furar.
- kkkkkkkkkk mais concerteza vai ficar top, po!!!!!!!!!

Mermão, enfia o top no cu. É um pé no saco esse povo que agrega uma expressão nova ao vocabulário e fica falando o tempo todo - até quando não faz sentido - só pra dizer que é da galera. Fica parecendo os sessenta por cento dos brasileiros depois de assistirem Tropa de Elite. "Gilson, quanta luz acessa, você acha que dinheiro cai do céu?", e o moleque responde "ah, mãe, bota na conta do papa". Se fosse filho meu, levaria umas palmadas pela falta de originalidade.

- Mais Sarah, se quizer, eu posso colocar seu nome na porta.. quero mto q você vá, to com saudade de dar palas contigo!!!!! kkkkkkkkkkkk

Confesso que realmente não entendo essas pessoas que fumam um baseado contigo duas vezes na vida e, depois de tempos sem lembrar de você e da sua existência de merda, resolvem te ressuscitar das cinzas, cheias de saudade numa manhã aleatória e improvável. Não tinha lógica. Que maluco insistente, é óbvio que o povo iria só porque foi vencido pelo cansaço.

- Pois é, tem tempo desde aquela última segunda vez em que nos vimos na vida, né?
- kkkkkkkkk éééééééééé cara, mais eu namorei 2 anos e pá, mais minha mulé era mto chata, nem saía, mais agora tem q zua com os amigos kkkkkkkkk
- Se ela era chata, então por que namorou tanto tempo?
- kkkkkkkkkkkkkkkkkk vc eh mto engraçada kkkkkkkkkkkk
- Hilária...
- kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
- Mas então, qual é o esquema desse evento aí?
- Ahhh.. vc tem q pegar convite comigo, mais naum pega dos outros naum, sacou??????
- Qual é a diferença? O seu me dá uma dose de rum?
- kkkkkkkkkkkkkkkkkk vc eh mt engraçada kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
- É, sou muito engraçada. Mas qual é a diferença?
- Eu tenho q passa mais convites, pode crer??????? aí ganho mais kkkkkkkkkk
- Entendi.
- Mais eu quero mto q vc va msm!!!!
- Aham, rola de guardar uns cinco ou seis pra mim então?
- Nossa, rola concerteza kkkkkkkkkk valeu msm, vai ficar mt top!

Lógico que sequer me dei ao trabalho de buscar os benditos convitinhos e espero, sinceramente, que alguém tenha ganho mais grana do que aquele chato filho da puta. É triste como nós nunca estamos livres dessas bestas exageradamente sorridentes que querem lucrar em cima dos outros. Afinal de contas, a maioria de nós se comporta como uma espécie sumariamente parasitária e tem que tomar muito na bunda, mesmo que seja à prestação. É por isso que eu digo que quando a risada é demais, o fucking Pai Eterno desconfia. E francamente, "quer me foder, me beija", né?

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

do jeito que o diabo gosta

Eu não tenho dias bons, ou são ruins ou são péssimos e dizer que não me sinto bem tornou-se uma espécie de pleonasmo. De uns anos pra cá, passei a despejar um olhar desesperançoso sobre a vida, acompanhado de uma sensação que é sempre como a de comer demais e eu sinto toda a indigestão da existência. Há algumas épocas em que eu costumo ficar ainda mais intragável do que habitualmente.
Depois de muitos dias enfiada em casa, eu me sentia como um tiozão cansado demais pra carregar o rabo pra rua. Quando resolvi sair já eram duas horas da manhã. Meu estado de espírito indicava que seria uma noite daquelas, estava disposta a recuperar o tempo em que me sujeitei à mesquinhez familiar, "mas que se foda", pensei, "não aguento ouvir mais nenhum samba-enredo e nada pode ser pior do que isso". Meti meu corpo desajeitado na primeira roupa que encontrei, calcei minhas sapatilhas gastas e fui encontrar um velho conhecido.
Quando chegamos no boteco lazarento, o único aberto àquela hora, topamos com outros dois caras que já estavam calibrados. Um deles, meu parente até então desconhecido, se encontrava em um estado caótico de insanidade, dando uns repentes que se exteriorizavam na forma de berros e eu fiquei imaginando a hora em que alguém ia enfiar a mão na fuça dele. O outro ainda conseguia manter a cabeça mais ou menos lúcida, conversando em um tom de voz normal. Quando você socializa com gente que já está muito louca, a melhor alternativa é alcançar o grau de desatino do outro, pelo menos pro diálogo ter alguma sintonia. E foi o que fizemos.
Nessas circunstâncias que implicam simpatia, normalmente eu costumo meter um sorrisão idiota na cara e executo essa ação de uma maneira tão patética que chega a causar pena. Mas naquele dia eu não precisava de facetas socialmente aceitáveis. Éramos todos insatisfeitos e estávamos sedentos de loucura. Os que não se contentam nunca acharão o seu desencanto com o mundo um inconveniente, entenderão suas dores e suas dúvidas serão sensatas.
Um dos meus maiores problemas sempre foi a dificuldade em me manter sóbria, porque quanto mais tempo permaneço distante do desatino, maior é o sofrimento e quanto maior o sofrimento, pior é o estrago na eventualidade de uma simples saída. Então, digamos que naquele dia eu tenha tirado a barriga da miséria.
Aquela fora uma noite da melhor qualidade porque havíamos bebido tudo o que havia para beber e usado o tanto quanto podíamos de entorpecentes. A quantidade de álcool e drogas determina o quão divertida sua vida pode ser naquele momento, portanto, quanto mais, melhor. A desvantagem do tóxico é que nunca há o suficiente, você pode estar novo por dentro, embora por fora esteja deformado e entortando a cara, sempre implorando por mais. Éramos invencíveis ou pensávamos ser.
Enquanto caminhávamos morro acima atrás do elixir que nos concedia super-poderes, eu pensava sobre como podemos ser tão hipócritas quando a oportunidade aparece e sobre como é fácil justificar nossas ações através de valores mesquinhos. Eu não tinha moral nenhuma pra falar de político corrupto ou do sistema que nos corrompe, eu mesma estava ali, corrompida e ébria. Aquilo era um pensamento estúpido e decidi que seria melhor escondê-lo atrás de outro pensamento muito mais interessante: queria a ilusão. E eu iria a pé até o inferno pra consegui-la.
Eu não consigo precisar por quanto tempo andamos, só sei que parecia uma via-sacra eterna, "essa porra não chega nunca, se eu andar mais um pouco vou parar no Ceará". Eu bufava, transpirava suor e álcool, não tinha a menor idéia de onde estava e quase chorei de emoção ao avistar um povo sentado no meio da rua. Era ali mesmo.
O drogado esporádico é um bicho escroto. A favela inteira sabe o que você está fazendo ali e não adianta tentar se portar como um local porque você fica ainda mais ridículo. É como um sujeito chegando à cidade grande montado em um jegue. Ele é a primeira coisa em que você bate o olho, o cara tem um letreiro luminoso na cabeça. A saída é ser você mesmo e aceitar que o povo não gosta de você, não quer ser seu amigo e que você deve dar o fora o mais rápido possível.
Agora explique a uma pessoa alucinada que ela tem que ficar de bico fechado. Queria comentar a complexidade da vida pra um bando de marginais. Eu só podia ser retardada. Minha vontade de fazer o social era insuportável. Por pouco não disparei a discorrer sobre a razão metafísica de a Monalisa sorrir sem mostrar os dentes. Isso fez com que eu praticamente engolisse a minha língua.
O caminho da volta nós percorremos com facilidade porque pra baixo todo santo ajuda. No rosto, ostentávamos a satisfação nítida que exprimia o nosso alívio. Eu, obviamente, seguia falando de maneira exasperada só Deus sabe o quê.
Nunca compreendi essa minha inclinação irresistível para o que faz mal. Eu simplesmente prefiro levar uma vida marginal e desgraçada ao invés de vender a minha alma a um punhado de babacas, gente que caga pela boca e tem mania de opinar até sobre quais devem ser as notas musicais dos meus flatos.
Nós bebemos a manhã toda e a tarde toda também. Ainda assim, a quantidade exorbitante de cerveja que ingeríamos era insuficiente, parecia não preencher os espaços. Sei que quando voltei pra casa já era noite. A minha cara amassada merecia um soco. No entanto, ao menos eu havia sobrevivido. Com cinco anos a menos na expectativa de vida, é claro.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

capítulo I

Eu sei que nasci no dia 8 de janeiro, mas as minhas lembranças são um breu intransponível e só aparecem a partir dos 4 anos, a sensação é de que eu tivera existido em coma até certa idade, ocasionando este hiato, e a partir daí, da noite para o dia, as coisas começassem a tomar forma e contorno e os eventos, por fim, registrados para me marcar de modo a definirem o que eu viria a ser.
O dia em que nasci é uma data que comunga com os nascimentos do Elvis Presley, do David Bowie, do Graham Chapman e do Sean Paul, inclusive do Alexandre Pires, também é o dia do fotógrafo e o dia em que Fidel chegou à Havana, mas não se resume somente a isto, a Isabel Allende só começa seus livros a 8 de janeiro, então deve ser uma data bacana. Sempre me senti muito especial por estas coincidências, mas a verdade é que é assim com todo o mundo e nisto não há nada de exclusivo, por isto, estou a me ver de uma forma bem idiota agora.


Da minha primeira escolinha eu não me lembro de praticamente nada, a não ser que odiava botar meus pés lá e, como minha existência se resume a passar vergonha, cheguei horrorizando com minhas botas ortopédicas. Botinhas brancas, pretas e marrons, talvez porque os estilistas não tivessem muita criatividade na época. Voltando ao assunto, lembro-me de que a simples menção do nome daquele lugar já era o suficiente para me causar calafrios. Era algo como o prenúncio do apocalipse ou como a voz do anti-Cristo balbuciando na minha orelha, portanto, a Escolinha do Pinóquio era para mim o mal à espreita e eu não sabia sequer dizer o porquê.
Uns poucos anos mais tarde minha mãe me explicou o motivo: eu era uma criança pentelha e chorona, então para calar a minha boca, a tia da classe me trancou numa espécie de porão junto com muitas galinhas dizendo que se eu não parasse, elas iriam me bicar. Somente um ser humano sádico é capaz disto. O pior foi a idiota acreditar que trancar uma criança num lugar com outros bichos iria funcionar. Faltou a percepção necessária para deduzir que eu as assustava muito mais com o meu berreiro do que elas a mim. De qualquer forma, esta demonstração de instabilidade mental da professora não adiantou porra nenhuma, já que não herdei o menor trauma das pobres galinhas, fritas ou vivas.
Trocaram-me de escola e na minha cabeça eu havia caído de pára-quedas na Nuvem de Algodão. Era uma casa muito bonita que exalava pelas suas janelas um cheiro maravilhoso de acolhimento e, então, aquela enorme estrutura de concreto se transfigurava numa criatura cheia de vida, sempre simpática e a lhe sorrir com ternura, como uma grande vovózona com seus netos. Fora, obviamente, construída para abrigar uma família e, talvez, fosse este o fato que lhe propiciava a aura de hospitalidade e confiança. Do lado de fora da varanda da frente, havia uma frondosa árvore figueira plantada em um jardim muito bem cuidado, aonde tudo era disposto graciosamente sobre um tapete gramado de um verde tão iluminado que me parecia ser o sol que emergia da terra, reforçando, por conseguinte, aquela atmosfera caseira que pairava no ar. Era incrível.
Lembro-me de que as tias gostavam muito de mim e me davam um carinho diferenciado, provavelmente porque minha mãe havia contado sobre o que me acontecera na antiga escola e, talvez, elas sentissem algo entre pena e compaixão ou tivessem medo de que eu me tornasse uma sociopata no futuro ou, então, quisessem evitar que, em eventuais acessos de ira, eu revivesse o episódio traumático e assassinasse meus coleguinhas pensando que eram galinhas. Pensando bem, foi muitíssimo bom que elas tenham cuidado de mim com tanto esmero.
Vasculhando a memória, eu me lembro de ter tido muitos problemas de adaptação, em primeiro lugar pela minha timidez e em segundo pelo medo de algo me acontecer, era um sentimento confuso, aparentemente injustificável, porque não me recordava do que aquela desgraçada havia feito comigo. Então, sem saber como explicar, a solução era abrir o bocão e implorar de joelhos, desesperada e terminantemente, para que a minha mãe não fosse embora e me largasse ali. Demorou uma caralhada de tempo para eu entender que lá as pessoas não fariam maldades comigo. A verdade é que minha mãe teve uma paciência de Jó.


A tia Lili foi a minha primeira professora na Nuvem de Algodão, nunca a esqueci e talvez nunca a esqueça, porque ela era o máximo, sempre divertida, paciente, dócil e linda aos meus olhos, com seus longos cabelos que lhe caíam nos ombros, muito pretos e muito lisos, como os de uma índia, aliás, ela realmente parecia uma índia como as dos livros. A tia Lili ainda é uma imagem quase real para mim, a pena que sinto nisto é que sempre que falo sobre ela, em seguida me vem à cabeça a imagem da Mara Maravilha. De uma forma ou de outra, há de aparecer qualquer bosta para avacalhar com nossas personagens preferidas da infância.
Depois foi a vez da tia Vânia, representando uma espécie de prólogo da autoridade maior e da rigidez dos anos vindouros. Nunca a ouvi levantar a voz, ser grosseira ou ter lapsos de histeria, pelo contrário, a sua autoridade advinha da maneira como ela nos olhava, sem titubear, também da sua voz firme e linear, sempre nos respeitando mas esperando-o em troca. Apesar da austeridade, era muito diferente das mulheres severas como eram as professoras do tempo da minha mãe que abusavam dos castigos físicos, ela era apenas firme e queria que fôssemos firmes não só dentro da sala de aula, ela nos estava dando uma lição para carregarmos durante a vida.


Como era uma escola relativamente pequena, nós éramos muito próximos uns dos outros, frequentávamos as casas uns dos outros, conhecíamos os pais uns dos outros, o que nos proporcionava uma sensação de familiaridade. Nós íamos de kombi juntos para a aula, eu, Juliane, Marcela, Felipe e mais um monte de crianças com o Senhor Luís, o legal, e a sua esposa Beth, a chata, mas que depois se revelou não tão chata assim.
Sexta-feira era o dia mais divertido porque, quando faltavam poucas crianças a serem deixadas em casa, e eu era uma das últimas, ele nos comprava frango assado, então brigávamos pelas coxas e pelas asas, resolvíamos na questão da idade ou tamanho, nos empanturrávamos, fazíamos todo tipo de porcariadas para desestimular o outro a comer, largávamos o pescoço, matando nossas mães de desgosto ao sermos entregues com os uniformes, além de sujos, muito engordurados.
Então havia esse Felipe. Era o tipo engraçadinho e saliente, magro, com os cabelos pretos, a pele bem clara e tinha uma característica singular que o diferia de todos os outros: levava flores para mim quase todos os dias e, claro, eu gostava dele. Mesmo com os óculos ridículos de fundo de garrafa com armação redonda e preta. Os estilistas da época também demonstraram total falta de criatividade com o design dos acessórios.
Normalmente, em um dia dos finais de semana ou ele vinha na minha casa brincar comigo ou eu ia na casa dele. A casa dele era mais divertida, eu gostava de ir lá para ver os 2 coelhos que eles tinham porque minha mãe nunca quis me dar um. Aliás, por causa disto no dia do meu desfile, alguns minutos antes de pisar na passarela, eu deitei no sofá do Teatro Pró-Música e dormi, deixando todo mundo na mão, claro que a timidez foi a razão principal, porém, gosto de culpar os coelhos.
É lógico que os bichinhos não eram a minha única motivação, a mãe dele, a Mônica, era extremamente divertida, pelo menos eu a via desta maneira mesmo sabendo que, quando se é criança, as coisas mais estúpidas são hilariantes, não que ela o fosse, é claro. E o fato de todas elas perderem o seu colorido inebriante conforme avançamos na idade me é pesaroso. Quando ficamos velhos, a nossa paleta de cores da vida, antes infinita, se transforma em um mundo sem graça em tons de cinza.
Por estar apaixonada, uma menina automaticamente se torna mais vaidosa, então de acordo com o meu conhecimento avançado da atmosfera sentimental, tudo o que eu precicava era de um sutiã, ele seria o aparato fundamental na minha conquista, muito embora eu nunca tenha entendido de onde surgiu este plano, já que uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra, de qualquer forma, eu pedi:
- Mãe, você me dá um sutiã?
A expressão que se construiu na cara dela foi impagável, ela tinha vontade de rir e estava estarrecida ao mesmo tempo. Nunca mais a vi executá-la novamente. Não resistindo ela gargalhou como uma desequilibrada mental, achei aquilo uma afronta, "não ria", eu disse como a ranzinza que sempre fui, então a gargalhada cessou e se abriu em um misto de convulsão e crise histérica de riso. Nunca havia sido tão ridicularizada na vida, era um ultraje.
Ganhei a desgraça do sutiã, exibia aquela merda bege, minúscula e ridícula pela casa como se fosse um troféu de campeonato que de nada me serviu para o amor e usava-o como um biquíni, não entendia muito bem como funcionava a dinâmica da peça de cima, afinal de contas, eu ainda nadava apenas com a parte de baixo porque, todos sabem, que deixar a bunda de fora ocasiona patologias. Minha mãe sempre me aterrorizava dizendo sobre os bichinhos malvados que entrariam ali e sobre a abominável, inigualável e execrável MICOSE, que era para mim como o que é um câncer de cérebro hoje em dia. Resumindo: eu usava a calcinha mais por medo de doenças do que por pudor e malícia.


Por ser uma criança neurótica e cheia de manias esquisitas, à uma certa altura, eu enfiei na minha cabeça que eu tinha que trancar a minha matrícula e não havia absolutamente nada que me fizesse mudar de idéia. Eu estava determinada a largar os estudos e acabei sobrepesando os irmãos da minha mãe com esta maluquice, principalmente a tia Gu. A pobre saía comigo debaixo de um sol desértico, subia o morro íngreme carregando minha mochila e, eventualmente, a mim, seu cérebro ficava a ponto de fundir de tanto mirabolar argumentos insanos do tipo "o prefeito disse que você ainda precisa assistir aula", tudo bem, pelo prefeito eu faria qualquer coisa e durante mais de 2 semanas, assisti aula pelo Carlos Alberto Bejani. Nunca recebi qualquer gratificação acadêmica deste filho da puta. Não sei qual das histórias da minha tia me dissuadiu da idéia ou se foi um processo natural, mas sei que não parei de estudar.
O terceiro período foi um ano em que a Nuvem de Algodão nos presenteava pela nossa formatura, mas descobri tardiamente que os presentes quem me dava era a minha mãe por um precinho bem camarada e que a escola apenas mandava bilhetes sedutores para os pais, então me senti amplamente ludibriada. Um destes mimos aconteceu antes da nossa apresentação de final de ano quando fomos em uma excursão à Petrópolis para conhecermos o Museu Imperial.
Não me lembro de ter visto um lugar tão bonito na minha vida e eu queria encostar em tudo, deitar na cama do Dom Pedro II, vestir o vestido da Dona Teresa Cristina, experimentar a coroa, eu tinha toda esta hiperatividade conduzida estabanadamente por um par de pantufas desgovernado, deslizando sobre tábuas enceradíssimas e que, obviamente, não deu muito certo.
Também fomos ao zoológico do Rio e é lógico que eu queria encostar nos animais, leões, orangotangos, girafas, elefantes, papagaios, avestruzes e em tudo o que eu reparasse qualquer sombra de movimento, acabei me decepcionando com a jibóia porque ela não quis aparecer. Que animal arrogante. Eu estava deslumbrada quando senti vontade de chorar, não entendia porque eles tinham que ficar presos, "aquilo deve ser horrível mamãe", tudo isto porque sempre fui uma sentimentalóide besta que se martiriza com o sofrimento alheio. Mas passou quando me escangalhei de rir ao ver o óculos de sol da minha mãe cair dentro da privada.
Não me lembro de outros fatos relevantes desta época, o que é uma pena porque gostaria muito de discorrer por horas sobre o quão humilhante fora a minha apresentação de final de ano por ter de dançar ao som de "era um biquíni de bolinha amarelinha tão pequenininho, mal cabia na Ana Maria", usando literalmente a porra de um biquíni. Cara, isto não é coisa que se faça com uma garota gordinha. Se ao menos eu tivesse podido usar um maiô...

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

há de chegar o dia

Há de chegar o dia em que o brasileiro deixará de viver fora de si e passará a aceitar a si, tendo a consciência, embora desoladora, de que, outrora, levara uma vida inútil repleta de ações inúteis e mecânicas, de que esboçara emoções inúteis e mecânicas, de que cumprira ordens inúteis e mecânicas, de que dissera palavras inúteis e mecânicas, de que existira de maneira inútil e mecânica.
Depois do último retumbar da ignorância coletiva, dar-se-á início, antes que propriamente chegue, o primeiro vislumbre de clarividência ideológica, como quando se está num cômodo escuro, abre-se a janela e, no entanto, as vistas precisem se acostumar à luz. Antes mesmo de que a intenção coletiva de mudança floresça, será apenas a semente, antes da semente, a polinização e, antes da polinização, a idéia.
A chegada deste dia será anunciada pelo sentimento de vazio do que não é vazio, com um quê de penumbra, análogo a um objeto que ofusca parcialmente a fonte de iluminação. Tomarão o conjunto universal de todas coisas e, dentro dele, identificarão o estorvo enfastiante de que ele é capaz de provocar em cada um de nós, não só pela necessidade de esforços diários que exige, mas por estes esforços repetidos conduzirem a lugar nenhum. No entanto, nada do que antes tivera sido seria abandonado ainda, seria tal qual um livro não finalizado ou um quadro que não se terminou de pintar, haveria, pois, qualquer coisa de incompleto ali.
Virá, por fim, este dia em que um vento furioso varrerá a moléstia viral que assola e tudo estará finalmente morto e àquele inferno, a que chamava de vida, igualmente. Todavia, como todas as coisas têm o seu revés e porque há males que vêm para o bem, o tufão que, primeiramente, destruíra, servira para espalhar o pólen também.
E quando soar apenas o chiado da brisa movimentando as folhas secas, toda a terra voltará a tomar cor e tudo que se sente, ou supõe que se sente, se apertará ao peito numa saudade longínqua da própria despedida, fazendo querer respirar a nova vida.
Há de chegar o dia...