quinta-feira, 10 de outubro de 2013

uma das verdades definitivas da vida

Gertrudes apagou o cigarro no cinzeiro abarrotado, soprou a fumaça, dirigiu-se, vacilante, ao armário e começou a puxar as gavetas cheia de um desespero completamente descoordenado, tirando caixas, jogando sutiãs, calcinhas, meias, camisetas amareladas, sapatos, tudo pra fora, e revirando fotos, bilhetes, números de telefones, buscando na memória mensagens antigas que conseguia lembrar a fim de obter alguma evidência pra convencê-la do contrário. Sua cabeça era uma tremenda confusão mas sabia que alguma coisa ficara pra trás. Ainda não compreendia bem ao certo o quê fora, se tivera sido a novidade e a empolgação, mas provavelmente nenhuma, ou se talvez tivera sido a leveza, a doçura e, sobretudo, a forma como um via o outro. E dessa coisa, perdida em alguma dessas curvas sinuosas pelas quais passaram acelerados e bêbados, sobrou uma saudade doida, do tipo que antes de saudade era outro sentimento impossível de definir, mas que tangia a felicidade extrema e que ela antes costumava se perguntar se seria possível alguém morrer de alegria. Pensando nisso, sentou e chorou numa clara demonstração de falta de auto-controle, babava e esfregava a cara como se quisesse arrancar nariz, boca, olhos, orelhas, e se olhava no espelho com toda a piedade que lhe era possível. Depois, ainda se debulhando em lágrimas, sentia um ódio do cão e arquitetava vinganças maquiavélicas, articulava discursos que nem Kant escreveu, pra depois se resignar e prosseguir a sua busca afobada naquela bagunça, somente pra encontrar a maldita certeza que escapou por entre seus dedos como uma neblina matinal.
Acontece é que era uma tarde feia, feia mesmo, e fria, fria mesmo, e eles estavam debaixo da coberta marrom e pelando, uma velha conhecida dos dois, que os havia acolhido por tantas noites e acabou com eles naquele verão que ainda se lembrava como se tivera sido ontem. Gertrudes sentia uma saudade louca de quando os dois assavam no quarto de Bonifácio, suando e fazendo um amor ainda mais alucinado da hora em que chegavam, bêbados pela manhã, muitas vezes sujos, até as tardes defumantes daquele tempo em que não se preocupavam com nada. Ela olhava dentro dos olhos de Bonifácio, de maneira retilínea e constante, enquanto segurava seu rosto entre as mãos finas e ele retribuía, acrescentando todo o amor e condescendência que ele sempre fora capaz de sentir, atingindo-a como uma espada bem no meio da alma. Não diziam muitas palavras porque não precisavam, o entendimento silencioso e mútuo era uma história velha pros dois, tão cúmplices. 
- Você foi feito pra amar. Disse, finalmente, com os olhos marejados, e sorriu de dor, com um aperto incômodo no peito. 
Bonifácil acenou afirmativamente embora não soubesse o que ela queria dizer de fato. A bem da verdade, não havia qualquer outra definição mais clara do que aquela, com um vernáculo específico no dicionário, "pessoas que são feitas para amar". Era algo mais próximo a uma condição, a um estado de espírito propício pra determinada atividade, do que a uma característica ou a um adjetivo que se aplica ou se atribui a alguém. Ele pensava que havia nascido pra amá-la até os confins da vida e ela pensava que ele era apenas uma criatura do amor e que, se eles botassem um ponto final naquele momento, logo depois ele já seria capaz de amar outra pessoa e de dizer a essa outra pessoa tudo o que ele dizia a Gertrudes, e ela sabia que isso não conseguiria suportar.
E enquanto ia remexendo nas suas tralhas emocionais, colocando as coisas no lugar, desvirando tudo do avesso, num lampejo íntimo, como numa revelação interior, teve a compreensão que a certeza de que tanto precisava não passava de um conceito acessório desnecessário, era uma pequena palavra desumana em que deveria cagar em cima, jogar na primeira lata de lixo que visse pelo caminho, pois o olhar do Bonifácio excluía toda e qualquer necessidade dela, porque a presença dele ali era a própria certeza encarnada, viva, pulsante e latejante. No fundo, Gertrudes sabia que ele era o amor assertivo e real, assustadoramente real, encarando-a com convicção e firmeza, esperando a retribuição equivalente da sua parte, mas que parecia engasgar a cada vez em que o assunto se aproximava.
Secou os olhos, raspou a garganta e atendeu o telefone. Do outro lado da linha, a voz que dizia seu nome com familiaridade e carinho, também falava sobre uma tal saudade doida, doida mesmo, então se sentiram gêmeos de espírito outra vez, e se amaram com a veemência habitual. Pegou um lápis e escreveu num bilhete uma poesia besta de dias atrás.

Traçamos pra nós mesmos um objetivo translúcido
cuja nitidez nos escapa por um triz
e a sua verdade é tão definitiva quanto a morte
e tão rápida quanto a velocidade da luz.
Para alcançá-lo é preciso mais do que disposição
são necessários sacrifícios bíblicos
privações pelas quais nenhum santo passou
renúncias heroicas que ninguém jamais ousou
esforços que estão para além da própria humanidade.

E talvez, quem sabe,
se a vida agir com bondade,
poderemos transformar a merda em algo próximo de amor.

Mas nunca entregou.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

clóvis

Eu não me lembrava mais de quando o Clóvis havia tomado aquela parte minha, a boa e a ruim, tudo junto numa espécie de lavagem que se dá aos miseráveis, sem separar nada, devorando bucho e lombo com igualdade de apetite e paladar. Era como se do meu todo houvesse dois sócios majoritários de um quinhão que agora competia bem mais a ele do que a mim, não por obrigação dele ou negligência minha, mas porque, de alguma forma, me parecia que aquele cara fosse mais talentoso no que concernem essas funções artesanais, tão sutis, tão necessárias de perícia, e que eu tinha a incompetência inata pra realizar, admito. Aliás, sempre fui grosseira e estabanada demais pra certas delicadezas que a vida exige.
Certo dia, ele chegou aqui em casa antes do trabalho, umas sete horas da manhã, fazia frio e o dia era de um branco homogêneo e enfadonho, desses que encerram qualquer esperança que se possa ter. Eu vestia uma blusa de linha furadinha, sem nada por baixo, deixando à mostra qualquer coisa dos meus peitos que a gravidade ainda não havia cuidado de arrastar pra baixo, mas não foi proposital. Ele achou sexy. Sorri constrangida. Ele riu do meu constrangimento. O fato é que ele acharia sexy até se eu estivesse usando uma calcinha enorme e uma camiseta furada no sovaco e manchada de café. Por isso, a segurança que o tesão inabalável dele incutia em mim vinha na forma do reflexo desse tesão, equivalente em intensidade, força e de direção oposta, e era bem ali, no encontro dos dois vetores sexuais, que batíamos de frente como os animais que éramos e a porra toda passava a fazer sentido.
Tínhamos a fome diária um do outro como necessidade básica de sobrevivência, talvez fosse por isso que não conseguíamos ir pra lados diferentes, não tenho certeza. Talvez, além da fome extrema, houvesse um amor extremo. Ou talvez, ainda, tivéssemos juntado a fome com a vontade de comer, unindo nossas naturezas voluptuosas ao amor que tínhamos, alcançando esse raro êxito que se busca incansável e implacavelmente, remexendo em todo o lixo do mundo pra encontrar algo que preste, algo pelo qual realmente valha a pena tirar o corpo exausto da cama nas manhãs como aquela em que ele apareceu aqui, mas também não sei. Só sei que quando sozinhos nós não passávamos de dois universos caóticos e solitários, entorpecidos e imersos na lisergia alcoólica que amenizava a nossa existência decadente, ao passo em que juntos, tolerar o mundo era uma tarefa menos dolorosa, ainda que o fizéssemos entorpecidos e imersos na mesma lisergia alcoólica. Era mais fácil porque não estávamos mais sozinhos, tínhamos um ao outro pra suportar o horror da vida e, eventualmente, conseguir encontrar qualquer beleza assustadora nela. 
Eu estava sentada não completamente de costas pro Clóvis, que estava só de cueca esticado na cama, olhando-o com ternura enquanto falávamos sobre amenidades, fumando nossos cigarros e rindo de algumas idiotices. Ele me puxou pra perto e ficamos alguns minutos em silêncio, saboreando a tranquilidade doce e aparentemente inabalável daquele momento, como se não houvesse nada acontecendo lá fora.
Era bom, e eu gostava de pensar que aquilo é que era algo próximo à paz, não de espírito, mas de um sossego inatingível, plácido e nupcial, que, por senso comum, as pessoas são obrigadas a respeitar. A habilidade que tivemos pra atingir aquela perfeição nos conferiu o direito de termos um fim sublime que nos eternizaria: uma bomba acertando a cidade bem no meio, liquidando-nos de modo notável antes que a rotina e a convivência assassina o fizessem por conta própria, com a sua falta de estilo habitual, impedindo que elas transformassem a nossa ilustre tragédia em mais uma repetição senil de existências pouco imaginativas. Aquele era o momento ideal pra evitar que nos assemelhássemos às vulgaridades de novela, e tinha que ser feito logo, porque era maravilhoso demais pra que a feiúra da realidade manchasse-o com sua mesquinhez.
Quando ele levantou e se pôs a vestir, fui tomada por um tremendo sentimento de pavor porque eu ficaria a sós e de frente com o espanto do meu cotidiano outra vez. Clóvis foi embora. E me ocorreu que a verdade é que eu não era unicamente minha e nem o Clóvis exclusivamente dele. Sem querer, havíamos nos roubado um do outro, e eu já não podia dizer onde começava um e onde começava o outro, mesmo sabendo onde era um e onde era o outro. Mas no final das contas, foi como se disséssemos "Ei, toma! Esse lote é seu, cuide dele como você cuida do próprio cu" e virássemos as costas sem dar qualquer informação sobre o terreno. Eu tinha pena do Clóvis por estar ligado tão intimamente a mim, mas ele me sorria com a cara toda e, além do mais, me achava sexy, é claro.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

da arte circense aplicada à mecânica social

- Sabe, Erica, essa sua personalidade de brucutu te prejudica muito diante da sociedade... as pessoas...
- O que tem elas?
- Não me leva a mal, hein.
- Desembucha, porra.
- As pessoas...
- Adquiriu gagueira agora, minha filha? E riu amigavelmente.
- É que as pessoas não gostam de você...
- Foda-se. Deu um trago prolongadamente forte no cigarro e olhou o dia leitoso sem considerar o que acabara de ouvir.
- Tá vendo? É justamente isso. Devolveu instantaneamente, como se já soubesse o que ela iria responder, tinha impaciência e depois generosidade na voz. Aquilo dava nos nervos.
- Elas não gostam de mim porque não me importo de que elas gostem? São mais imbecis do que eu imaginava...
- Não... Disse como quem está prestes a confessar um pecado gravíssimo. Elas não gostam porque você é estúpida, beberrona e não gostam principalmente da forma como você pensa, as agride porque as expõe, mesmo que não falem abertamente, entende? É como dar murro em ponta de faca, elas nunca irão admitir seus ridículos pessoais, cara. É mais fácil dizer que você é errada do que se assumir vazio e superficial. 
- Agora é minha responsabilidade se fulano de tal veste a carapuça e fica choramingando pelos cantos pelo idiota que é? Eu não posso fazer nada se nego enche a cabeça de rancor e resolve me odiar. E não quero fazer nada sobre isso porque não tenho que fazer nada sobre isso. Não tenho que ser venerada e não quero ser venerada por gente imbecil, isso só provaria que eu desci na escala mental, compreende? Respondeu com o tédio de quem se vê obrigado a dar prosseguimento a um assunto que não levaria à nenhuma conclusão diferente daquilo que acabara de dizer.
- Verdade... 
- Somos todos um bando de idiotas que se preocupa demais por coisas patéticas demais. Acrescentou em tom ríspido.
- Mas nem todos pensam assim, Erica. 
- Você é mesmo estranha. Não sei o que quer: primeiro concorda comigo, depois diz que outras pessoas não pensam da mesma forma que eu, e o pior, diz isso como se eu nunca tivesse reparado na disparidade de ideias entre uns e outros. Haha. Você sabe que estou dizendo a verdade e insiste pra que eu passe a agradar gente que não suporto. Como isso pode ser, digamos, sensato pra você? Não pode ser sério que você queira agradar gente que detesta... não tem lógica.
- Sim, tudo bem, concordo com isso, mas você não precisa mostrar esse sentimento. As pessoas se ofendem.
- As pessoas, as pessoas, as pessoas... você anda vendo novela demais. Então quer dizer que eu devo me preocupar diariamente com os frágeis sentimentos delas, zelar e cuidar pra que nada abale seus castelos de areia fantásticos, e suprimir meu desafeto só porque elas se ofendem com quem não gosta delas? PUTA QUE PARIU! Que tipo de gente tem necessidade de ser bajulada o tempo todo? Além disso, pra carência e insegurança existe tratamento que é feito por profissionais da área. 
- Haha. Eu sei que é idiota. Mas tive uma ideia: talvez você devesse se dedicar à caridade, ainda que somente pra se gabar dela. Você tem um coração enorme e podia se aproveitar disso... Disse-lhe sorrindo como uma mãe que diz ao filho problemático que ela não suporta que ele tem qualidades, apesar de tudo.
- Ah é? O que você me sugere? Será que eu devo ir a algum orfanato e limpar os banheiros? Eu poderia tirar foto abraçada ao mendigo xexelento que recita Nietzsche aqui na rua pra publicar na internet, e uma lendo Crime e Castigo pros presidiários do CERESP, e uma limpando o nariz de alguma criança catarrenta. Eu poderia executar com maestria todas essas ações visualmente impactantes que puxam a lágrima e fazem lembrar dos acordes musicais da Disney, especialmente aquele em que o macaco Rafiki apresenta o pequeno e fofo Simba à savana, mas lembre-se que a interpretação da Ivete Sangalo não surte o mesmo efeito, ok?
- Hahahahahaha. Você é ridícula! Hahahahahaha.
- E eu deveria fazer tudo isso usando uma camisa com os dizeres: "gentileza gera gentileza". Acrescentou com bom humor.
- Seriam belíssimas fotos, Erica. Respondeu com descontração.
- Daí eu ergueria meu pobre coitado, eleito pela circunstância da caridade o príncipe leão do momento, considerando os efeitos da iluminação sobre a cor, preferencialmente preta pra surtir o belíssimo efeito da diversidade, e colocaria um ponto final no meu estigma social e particular da vileza, enquanto continuaria sonhando com a eventualidade de um Pulitzer, agindo como quem não entende o motivo dele, como quem tem pouco talento pra fama, como quem nunca quis explorar a miséria humana, como quem não promove a miséria humana como entretenimento sádico, como se eu não fosse uma doente mental obcecada com a imagem de moça de família. 
- Pronto, apelou! Hahaha.
- Você acha que eu apelei? Olha, eu poderia ser realmente apelativa, elevar minha a falta de senso ao nível extremo, vestir o hábito da bondade falseada e me locomover com a superioridade que atribuirei arbitrariamente a mim mesma sem o aval de nenhuma autoridade do ramo. Andar por aí com a segurança elegante da Lady Diana e a humildade da Madre Teresa de Calcutá. Mas tudo mentira, claro. Eu poderia decorar um milhão de frases otimistas e digitá-las pros amigos virtuais, dizê-las aos conhecidos em apuros, às senhorinhas caquéticas nas filas dos bancos, e construir toda uma ficção em torno da personagem bíblica que as pessoas iriam aplaudir compulsivamente. 
Parou e respirou de cansaço e irritação. Olhou para a amiga que esperava ansiosa, como uma criança esperando a sobremesa.
- É, eu poderia, mas também não quero isso. Prosseguiu olhando através da janela, esquecendo-se momentaneamente que estava acompanhada. E não quero porque não tenho medo de ser declaradamente babaca, especialmente porque a babaquice é recíproca, e ela vem de todos os lados com o cheiro forte do peido de cerveja acompanhado de uma diarreia daquelas após um porre bem tomado, disfarçado de perfume francês em uma falsificação descaradamente porca. Não faço porque não preciso esconder preconceitos, nem torná-los segredos de estado de uma alma adoecida que se mata diariamente pra ostentar uma imagem limpa que esconde a podridão do fundo. Finalizou quase sem fôlego.
- Ai, credo! Que nojo! Disse-lhe a amiga sorrindo com ar de ojeriza.
Riu disso copiosamente e censurou o nojo alegando que todos cagam assim eventualmente. Gargalharam juntas e foram embora buscar um bar com cerveja barata.

O medo que as pessoas têm de ser escrotas: que circo! E a coragem que elas têm de esconder suas misérias pessoais atrás de si, enquanto transformam as dos outros em um espetáculo de autopromoção: que circo! Se os índios soubessem quantas pessoas fazem graça às custas deles, provavelmente dariam um tiro de zarabatana no meio do cu de muita gente. Jesus então... deve saltitar à direita de Deus-pai e mandá-lo foder com geral. Buda nem se fala. Isso sem mencionar a questão da Clarice Lispector, outra divindade cultuada na nova religião da era moderna. É um tremendo circo, daqueles com palhaços tristes, equilibristas pernetas, elefante cego e trapezista de cadeira de rodas. Arquitetam um show de horror capenga e ainda assim são profundamente capazes de se escandalizar por coisas tão pequenas, enquanto extraem a naturalidade com que essas miudezas deveriam ser vistas. Tomam qualquer fala de contrariedade como afronta, ofensa, injúria, ultraje e heresia dentro dos parâmetros retardados que definiram, e é um absurdo querer que a humanidade seja expurgada do planeta, caçada como um cirurgião que persegue obstinadamente um câncer, é pavoroso confessar a lástima da vida em sociedade, é proibido criminalizar eticamente a omissão porque ela é parte dos alicerces que sustentam a tenda furada que abriga os artistas de araque, e a verdade, sobretudo, deve ser economizada e restringida a quando for positiva. Eis a soberania das doutrinas circenses-sociais pra expandir o círculo de amizades convenientes e ser aceito, ser admirado, ser desejado, ser respeitado mesmo que não seja por quem realmente se é, mesmo que isso custe a melhor parte de uma existência. Que circo! O espetáculo é de péssima qualidade, a música é ruim e está agarrando, os números estão ultrapassados, e no entanto, são orgulhosos demais pra abandonar o palco. O show tem que continuar. Que maldito circo...

segunda-feira, 8 de julho de 2013

café e amor

Podíamos perceber o dia claro lá fora pelas frestas da persiana grená, já meio desgastada pelo clima e pelo tempo, enquanto nós dois, embolados no edredom florido e envoltos na névoa acinzentada de nicotina, o ignorávamos com a arrogância tipicamente humana, como se não fosse nada. Você com a cara enfiada no meu pescoço pra sentir o cheiro fresco de banho, pesando gostosamente no meu ombro esquerdo, é, eu gosto de deitar na beirada, também gosto de sentir a sua respiração alta e franca em mim, e então você adormece subitamente, doce e inocente, na tranquilidade de uma criança despreocupada. 
Daqui de dentro somos apenas parênteses no mundo, uma ruptura gentil no tempo, a paz por dentro do caos febril da cidade, a calma deliciosa e indolente diante da impaciência da vida, e eu me sinto como em Samba e Amor do Chico Buarque, à exceção do samba que não faço mesmo, confesso, o que me compete é o amor, uma arte obscura que requer habilidades que ainda não desenvolvi, mas acredito que eu esteja no caminho porque você pega minha mão e me conduz por essas trilhas confusas e bifurcadas sem titubear, sem nunca ter dúvida sobre nada, enquanto eu, por outro lado, esse poço de incertezas, vou como um burro empacado que você tem que fazer força pro animal ir pra frente. Mas vou, ao menos tenho ido.
Penso que você fica simplesmente deslumbrante esticado na minha cama de solteiro, essa ideia me consome em forma de um tesão meio desesperado, e começo a deslizar a mão pelo seu corpo inerte, numa ação meio necrofílica, é bom porque macio, vou primeiro nas costas, seu ponto fraco, depois nos braços, nas bolas, quero fazer amor, beijo sua testa com toda a ternura que me é possível, sem que você veja fica tudo mais fácil, mas você dorme um sono profundo, tácito, mole e prolongado.
Já não penso no seu pau. Paro e te observo por minutos que não consigo precisar, suas pálpebras cerradas com a aderência de uma super-cola, os lábios antes carnudos estão agora inchados, bem como o nariz, e já não penso no seu pau, você mexe os pés como quem está confortável demais pro esforço de se inclinar pra coçá-los, eu continuo a te olhar com mais amor do que antes, provavelmente mais do que nunca, talvez o silêncio de fato precipite o afeto, mas não tenho certeza.
Levanto-me e vou coar café, e nesse momento há no meu peito mais sentimentos do que já tive durante a vida inteira. Ao retornar ao quarto que cheira a sono, segurando a minha xícara fumegante e perfumada, sento-me de costas pra você, que chama meu nome delicadamente, mas quando devolvo a atenção você já está virado pra parede a dormir com a brandura habitual. Eu sorrio um riso mudo e leve pelo seu inconsciente ter me buscado, pego um bloco e ponho a escrever porque eu não estou pensando no seu pau. Juro.

terça-feira, 21 de maio de 2013

não faça nunca o que precisa ser feito ontem

Seu desejo era a liberdade, um 1968 francês particular, o próprio grito do Ipiranga porque uma hora cansa e cansou, cansou desde quando a memória conseguia alcançar e olha que tinha a cabeça muito boa. Era  um cansaço bafiento de verão, desses em que a força de vontade é suprimida pelo calor sufocante, com as calçolas infantis suadas, tez, têmporas e ancas também suadas, tudo um horror úmido e brilhante, mas era isso por dentro e de dentro pra fora. E fora era o tédio, o fastio, refeições feitas às pressas, atividades domésticas que odiava executar, talhos nos dedos finos, unhas por fazer e coisa e tal. Dali da sua caverna abafada, através de algumas fissuras, via o mundo girando lisergicamente e ela o observava com o olhar desinteressado e míope, o que estava à distância era embaçado e disforme, o que enxergava de perto era deformado e asqueroso, mas era o movimento que chamava a sua atenção, a beleza e a monstruosidade daquela roda gigante entorpecida, ensopada de misérias e grandezas supremas atreladas umas às outras, como uma grande molécula que você pode manipular a grosso modo. E de fora para dentro, ao voltar a cabeça para o interior, era o regresso ao misantropismo de sempre, com as pessoas de sempre e outras pessoas pra encher a paciência tanto quanto pelos púbicos possuía. O aroma do ambiente era a mistura do cheiro de peido do feijão recentemente cozido, com o do café recentemente coado e com o da nicotina recentemente tragada, um cheiro agridoce meio adstringente que fazia a língua grudar por dentro, como se tivesse tomado um copo de cimento. Olhou para a pia e viu uma montanha de pratos, copos, panelas e talheres com comida seca e encrostrada, foi quando se deu conta de que a sua vida havia se reduzido a lavar louça. Desjejum, almoço, lanche, janta, e a sua vida era somente uma ação cíclica de lavar louça. Pensou no medo de não ser grande nunca, grande figurativamente e nunca literalmente, sobrando-lhe o pavor oscilante e nauseabundo, que obnubilava o eu por cima do eu e por cima de outros eus até que chegasse a ela, até que o eu fosse apenas uma imagem turva e distorcida de quem era. E o medo lhe figurava como uma criatura gosmenta que rastejava pelas frestas, pegando-a no encalço quando estivesse lavando as putas das louças, ou simplesmente no momento íntimo de desdém, em que estaria se olhando no espelho do banheiro após o banho, nua da cintura pra cima, reparando nas gotas que escorriam dos cabelos molhados até o bico endurecido do seio esquerdo e mergulhando no precipício da insignificância, tendo completado a missão do simples compromisso biológico. Sentiu uma pontada na bexiga e sentiu que precisava mijar, voltando a si, resolveu que seria melhor deixar a revolução para depois, tinha mais o que fazer. Às louças.