terça-feira, 24 de setembro de 2013

da arte circense aplicada à mecânica social

- Sabe, Erica, essa sua personalidade de brucutu te prejudica muito diante da sociedade... as pessoas...
- O que tem elas?
- Não me leva a mal, hein.
- Desembucha, porra.
- As pessoas...
- Adquiriu gagueira agora, minha filha? E riu amigavelmente.
- É que as pessoas não gostam de você...
- Foda-se. Deu um trago prolongadamente forte no cigarro e olhou o dia leitoso sem considerar o que acabara de ouvir.
- Tá vendo? É justamente isso. Devolveu instantaneamente, como se já soubesse o que ela iria responder, tinha impaciência e depois generosidade na voz. Aquilo dava nos nervos.
- Elas não gostam de mim porque não me importo de que elas gostem? São mais imbecis do que eu imaginava...
- Não... Disse como quem está prestes a confessar um pecado gravíssimo. Elas não gostam porque você é estúpida, beberrona e não gostam principalmente da forma como você pensa, as agride porque as expõe, mesmo que não falem abertamente, entende? É como dar murro em ponta de faca, elas nunca irão admitir seus ridículos pessoais, cara. É mais fácil dizer que você é errada do que se assumir vazio e superficial. 
- Agora é minha responsabilidade se fulano de tal veste a carapuça e fica choramingando pelos cantos pelo idiota que é? Eu não posso fazer nada se nego enche a cabeça de rancor e resolve me odiar. E não quero fazer nada sobre isso porque não tenho que fazer nada sobre isso. Não tenho que ser venerada e não quero ser venerada por gente imbecil, isso só provaria que eu desci na escala mental, compreende? Respondeu com o tédio de quem se vê obrigado a dar prosseguimento a um assunto que não levaria à nenhuma conclusão diferente daquilo que acabara de dizer.
- Verdade... 
- Somos todos um bando de idiotas que se preocupa demais por coisas patéticas demais. Acrescentou em tom ríspido.
- Mas nem todos pensam assim, Erica. 
- Você é mesmo estranha. Não sei o que quer: primeiro concorda comigo, depois diz que outras pessoas não pensam da mesma forma que eu, e o pior, diz isso como se eu nunca tivesse reparado na disparidade de ideias entre uns e outros. Haha. Você sabe que estou dizendo a verdade e insiste pra que eu passe a agradar gente que não suporto. Como isso pode ser, digamos, sensato pra você? Não pode ser sério que você queira agradar gente que detesta... não tem lógica.
- Sim, tudo bem, concordo com isso, mas você não precisa mostrar esse sentimento. As pessoas se ofendem.
- As pessoas, as pessoas, as pessoas... você anda vendo novela demais. Então quer dizer que eu devo me preocupar diariamente com os frágeis sentimentos delas, zelar e cuidar pra que nada abale seus castelos de areia fantásticos, e suprimir meu desafeto só porque elas se ofendem com quem não gosta delas? PUTA QUE PARIU! Que tipo de gente tem necessidade de ser bajulada o tempo todo? Além disso, pra carência e insegurança existe tratamento que é feito por profissionais da área. 
- Haha. Eu sei que é idiota. Mas tive uma ideia: talvez você devesse se dedicar à caridade, ainda que somente pra se gabar dela. Você tem um coração enorme e podia se aproveitar disso... Disse-lhe sorrindo como uma mãe que diz ao filho problemático que ela não suporta que ele tem qualidades, apesar de tudo.
- Ah é? O que você me sugere? Será que eu devo ir a algum orfanato e limpar os banheiros? Eu poderia tirar foto abraçada ao mendigo xexelento que recita Nietzsche aqui na rua pra publicar na internet, e uma lendo Crime e Castigo pros presidiários do CERESP, e uma limpando o nariz de alguma criança catarrenta. Eu poderia executar com maestria todas essas ações visualmente impactantes que puxam a lágrima e fazem lembrar dos acordes musicais da Disney, especialmente aquele em que o macaco Rafiki apresenta o pequeno e fofo Simba à savana, mas lembre-se que a interpretação da Ivete Sangalo não surte o mesmo efeito, ok?
- Hahahahahaha. Você é ridícula! Hahahahahaha.
- E eu deveria fazer tudo isso usando uma camisa com os dizeres: "gentileza gera gentileza". Acrescentou com bom humor.
- Seriam belíssimas fotos, Erica. Respondeu com descontração.
- Daí eu ergueria meu pobre coitado, eleito pela circunstância da caridade o príncipe leão do momento, considerando os efeitos da iluminação sobre a cor, preferencialmente preta pra surtir o belíssimo efeito da diversidade, e colocaria um ponto final no meu estigma social e particular da vileza, enquanto continuaria sonhando com a eventualidade de um Pulitzer, agindo como quem não entende o motivo dele, como quem tem pouco talento pra fama, como quem nunca quis explorar a miséria humana, como quem não promove a miséria humana como entretenimento sádico, como se eu não fosse uma doente mental obcecada com a imagem de moça de família. 
- Pronto, apelou! Hahaha.
- Você acha que eu apelei? Olha, eu poderia ser realmente apelativa, elevar minha a falta de senso ao nível extremo, vestir o hábito da bondade falseada e me locomover com a superioridade que atribuirei arbitrariamente a mim mesma sem o aval de nenhuma autoridade do ramo. Andar por aí com a segurança elegante da Lady Diana e a humildade da Madre Teresa de Calcutá. Mas tudo mentira, claro. Eu poderia decorar um milhão de frases otimistas e digitá-las pros amigos virtuais, dizê-las aos conhecidos em apuros, às senhorinhas caquéticas nas filas dos bancos, e construir toda uma ficção em torno da personagem bíblica que as pessoas iriam aplaudir compulsivamente. 
Parou e respirou de cansaço e irritação. Olhou para a amiga que esperava ansiosa, como uma criança esperando a sobremesa.
- É, eu poderia, mas também não quero isso. Prosseguiu olhando através da janela, esquecendo-se momentaneamente que estava acompanhada. E não quero porque não tenho medo de ser declaradamente babaca, especialmente porque a babaquice é recíproca, e ela vem de todos os lados com o cheiro forte do peido de cerveja acompanhado de uma diarreia daquelas após um porre bem tomado, disfarçado de perfume francês em uma falsificação descaradamente porca. Não faço porque não preciso esconder preconceitos, nem torná-los segredos de estado de uma alma adoecida que se mata diariamente pra ostentar uma imagem limpa que esconde a podridão do fundo. Finalizou quase sem fôlego.
- Ai, credo! Que nojo! Disse-lhe a amiga sorrindo com ar de ojeriza.
Riu disso copiosamente e censurou o nojo alegando que todos cagam assim eventualmente. Gargalharam juntas e foram embora buscar um bar com cerveja barata.

O medo que as pessoas têm de ser escrotas: que circo! E a coragem que elas têm de esconder suas misérias pessoais atrás de si, enquanto transformam as dos outros em um espetáculo de autopromoção: que circo! Se os índios soubessem quantas pessoas fazem graça às custas deles, provavelmente dariam um tiro de zarabatana no meio do cu de muita gente. Jesus então... deve saltitar à direita de Deus-pai e mandá-lo foder com geral. Buda nem se fala. Isso sem mencionar a questão da Clarice Lispector, outra divindade cultuada na nova religião da era moderna. É um tremendo circo, daqueles com palhaços tristes, equilibristas pernetas, elefante cego e trapezista de cadeira de rodas. Arquitetam um show de horror capenga e ainda assim são profundamente capazes de se escandalizar por coisas tão pequenas, enquanto extraem a naturalidade com que essas miudezas deveriam ser vistas. Tomam qualquer fala de contrariedade como afronta, ofensa, injúria, ultraje e heresia dentro dos parâmetros retardados que definiram, e é um absurdo querer que a humanidade seja expurgada do planeta, caçada como um cirurgião que persegue obstinadamente um câncer, é pavoroso confessar a lástima da vida em sociedade, é proibido criminalizar eticamente a omissão porque ela é parte dos alicerces que sustentam a tenda furada que abriga os artistas de araque, e a verdade, sobretudo, deve ser economizada e restringida a quando for positiva. Eis a soberania das doutrinas circenses-sociais pra expandir o círculo de amizades convenientes e ser aceito, ser admirado, ser desejado, ser respeitado mesmo que não seja por quem realmente se é, mesmo que isso custe a melhor parte de uma existência. Que circo! O espetáculo é de péssima qualidade, a música é ruim e está agarrando, os números estão ultrapassados, e no entanto, são orgulhosos demais pra abandonar o palco. O show tem que continuar. Que maldito circo...