quarta-feira, 23 de abril de 2008

para os descrentes das coisinhas simples

Disseram-me há muito que o dia torna-se mais longo quando acordamos cedo, isso é certo e não conheci ninguém capaz de contra-argumentar. Pois eu levantei cedo da cama, não o suficientemente cedo para ver o nascer do sol, mas quando liguei a televisão ainda passava uma aula do Telecurso. Um ator que, desgraçadamente, não consegui identificá-lo, resmungava uma bobagem qualquer sobre mecânica, dizia algo sobre brocas e toda essa parafernália que nunca me chamou tanta atenção.
Larguei os rabiscos que eu esboçara a noite toda e peguei um livro de crônicas do velho Braga, abrindo-o aleatoriamente numa página e lá estava “la verando estas vera jardeno, plena de floroi”. Nunca estudei esperanto, mas presumi que a varanda ou o verão estivesse com muitas flores no jardim. De qualquer forma, era ainda uma boa notícia e soou mais feliz do que se ele tivesse escrito que a varanda estiva cheia de orangotangos verde-fluorescentes.
Recomeçando do princípio - dia longo, esperanto etc -, complementarei a tese reproduzindo o complemento já argumentado por alguém, igualmente esquecido pelo tempo, florindo com floroi, seja lá o que isso signifique. Logo relacionei a frase estapafúrdia àquela manhã exuberante que gritava ao lado de fora da minha janela pela minha contemplação. Abri-a. A claridade gostosa foi invadindo meu quarto sem pedir licença, porque ela já sabia que era bem vinda.
Puta merda! O cheiro da manhã transmite uma condescendência única. Aspirar e inspirar purifica, nos redime enquanto seres humanos ingratos que somos, a sua cor aguça todos aqueles sentidos que esquecemos que temos durante o dia, porque arrumamos complicações diárias demais, corremos de um lado para o outro assumindo a condição de transeuntes vulgares, esquecemo-nos que a vida vai além desse caoticismo inóspito.
Nossos sentidos são falhos e se restringem ao que nosso cotidiano medíocre impele, coagidos por toda essa obrigação que nos move durante a vida. Ver o céu ainda límpido aquela manhã me fez convalescer, integrou meu corpo e meu espírito de forma intensa, ao menos durante o decorrer daquele dia.
Eu digo. Aproveitem esses momentos sugando tudo o quê eles possam oferecer, deixando-os que, paralelamente, suguem todo o seu esforço em troca do cansaço sublime que conforta a consciência. É o que eu sempre venerei. Muito embora, nunca tenha conseguido colocar esse hábito em prática plenamente.
Tenho acordado antes mesmo de o despertador dar seu chilique matinal, acordo mesmo sem ter dormido. Tomo um banho. Sirvo uma xícara de café preto bem forte para despertar-me de fato, logo meus dedos buscam meu maço de cigarros amassados, feito o de um bêbado. Regurgito ar após a primeira tragada, como de costume, e fito a manhã como se fosse a primeira e última vez, completamente lúcida. Lúcida como se estivesse para morrer.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

não sou nada

Um dia desses um sujeitinho péssimo me disse que eu era intelectual. Meu Deus, que absurdo! Ofendi-me. Eu não sou. E não é por modéstia. Não sou porque um intelectual usa, sobretudo, a inteligência. O que eu não faço de modo algum. Sou impulsiva. Sinto e ajo quase que instantaneamente.
O intelectual também tem cultura. E eu assumo: sou pobre de cultura. Não li grandes clássicos literários. Pra falar a verdade, eu já não leio praticamente nada. Sou uma péssima leitora, apesar da vasta biblioteca que eu mantenho no meu quarto, na esperança de que, algum dia, eu me torne menos relapsa em relação ao meu conteúdo literário.
À parte isso, tenho um coração capaz de sentir o abstrato e que, vez ou outra, me motiva a vir aqui desabafar. O que não faz de mim uma escritora, é claro. Também estou matriculada no curso de Engenharia de Telecomunicações, não me esforço nem um pouco. Tenho preguiça, como diria meu amigo Pessoa, "ter profissão pesa aos ombros como um fardo pago".
Então o que eu sou?
Eu não sou nada a não ser resquícios. Eu não poderia querer ser alguma coisa, não tenho essa pretensão. Tudo o que trago comigo, a bagagem da minha vida, são os fragmentos soltos, às vezes sujos, sempre desconexos e fedidos. São os resquícios do que não sobrou, ainda que tenha existido.
Perco-me em mim mesma tentando me achar. Talvez com muito medo de me achar, porque guardo à sete chaves, um lado infantil que não quer amadurecer nunca, com receio de perder os prazeres bobos e simples da vida.
Eu não poderia querer ser nada a não ser resquícios. Um misto de ilusões patéticas e, obviamente, inatingíveis, aliadas aos meus desgostos, decepções e as pouquíssimas alegrias que tive.
Eu sigo sozinha. Buscando, achando, perdendo e rejuntando com encaixes os meus cacos, como já me acostumei. E não reclamo. Eu gosto de ser assim. E eu só poderia ser assim: meio estranha, meio só, meio nada. Um palhacinho triste.

sábado, 5 de abril de 2008

surtay!

Ontem, a raiva e a frustração que eu senti me foram tantas que tive um colapso nervoso. Joguei as cadeiras da mesa da cozinha pra todos os cantos e tive que me controlar absurdamente pra não quebrar o resto da casa.
E agora sentada aqui na minha cadeirinha, fico me lembrando de como eu me senti relaxada, aliviada e calma após o episódio. É. Eu devo curtir uma selvageria.
Tudo bem. Cadê o Olcadil, o Rivotril, o Absinto e o Lexotan?
Essa noite eu estava surtada e, graças a Deus!, sozinha. Eu não quero nem ver no dia em que me encherem a paciência de vez. Eu jogo cadeira nos outros lá na faculdade mesmo.
Eu virei uma panela de pressão ambulante.
Eu já não sei mais dizer até que ponto vai o descaso das pessoas. Ou a falsidade. Ou a dissimulação. Ou todas essas bostas juntas.
Só sei que eu cansada de distribuir sorrisinhos socialmente engajados por aí.
Você cumprimenta o cara que, provavelmente, vai comer sua namorada. Você cumprimenta a garota que, certamente, vai dar pro seu namorado. Você cumprimenta todos os dias, todo o tempo, aqueles filhos de putas que, obviamente, irão te apunhalar pelas costas.
Mas você é sociável. Você é educado. Você tem alguma classe. Tem até um pouco de cultura. Sabe comer com garfo e faca e consegue limpar a própria bunda. Você tem um círculo social abrangente. Pode até se sentir infeliz como eu, mas está sempre por perto. Sempre disposto. Sempre alegre. Sempre altivo. Você está sempre "sempre".
Você olha os imbecis à sua volta, sorri amigavelmente pra todos e se lembra que não tomou seu comprimidinho de lítio pela manhã.
Ai, que neurose!