terça-feira, 1 de novembro de 2011

cálculo, café, cigarros e devaneios na áfrica

Peguei o meu bloquinho porque senti uma necessidade que beirava a tara de escrever alguma coisa, qualquer coisa. Não tinha a menor idéia do assunto, pensei bobagens corriqueiras do meu dia-a-dia monótono, conversas de padaria, um deboche sobre minha última cachaçada da qual me recordo pouquíssimo, rejeitei todas as idéias e esbocei um pensamento pretensioso de que eu deveria dar início a um romance, contando as histórias cáusticas e perversas sobre as minhas excursões ao submundo mas acabei rejeitando também esta idéia por genuína falta de vontade de dar prosseguimento ao esforço de ter que fazer esforço, e apenas a simples possibilidade de me empenhar por isto já foi o suficiente para abrir prerrogativa à minha eterna preguiça.
Tomei um gole do café gelado, vislumbrei um outro livro de cálculo esperando por mim cheio de equações diferenciais que furtavam vez ou outra a minha atenção, tomei outro gole do café gelado, eu tinha que estudar, revirei a memória em busca de qualquer coisa que merecesse minha admiração, qualquer fato extraordinário que nunca me aconteceu, qualquer tópico filosófico relevante, qualquer dissertação acerca da minha frustração com a sociedade, qualquer relacionamento mal sucedido mas lembrei que não me relaciono com ninguém há meses e os insucessos passados já não me interessam desvendar, mais outro gole daquele café gelado, um cigarro e... nada.
Está para nascer pessoa menos espirituosa do que eu no que concerne o ofício. Estive na iminência de escrever contos longos mas a disposição para o trabalho prolongado nunca foi o meu forte, sofro da síndrome da obra inacabada. A minha grande ambição profissional se resume a me escravizar por um período da vida, somente o suficiente para ganhar um dinheiro que dê para comprar um pedaço de terra na África, esvaziá-lo, emancipá-lo, cercá-lo e passar o resto dos meus dias lendo, escrevendo, lendo, enchendo a cara, escrevendo, acordando podre de ressaca, lendo, escrevendo, enchendo a cara, acordando podre de ressaca e observando orangotangos saltarem de galho em galho.
Preciso falar do meu sonho. Não escolhi o continente africano aleatoriamente, escolhi-o, primeiramente, por ser bem longe daqui, das pessoas daqui, das mentalidades limitadas daqui, em segundo lugar, porque é o lugar mais fodido do planeta e, evidentemente, o custo-benefício valerá à pena pois não falta político corrupto querendo se livrar da pica que deve ser administrar miseráveis infectados com HIV, milícias armadas até os dentes, famintos pisando nas cabeças uns dos outros atrás de grãos de arroz e, finalmente, em terceiro lugar mas não menos importante, a fauna daquele pedaço de mundo esquecido por Deus realmente me agrada e me faz acreditar que vale a pena me manter viva para contemplar alguma beleza perdida no meio das toneladas de bosta deste planeta corrompido e imundo.
Eu e o meu futuro país solitário africano e as minhas cervejas e os meus deslumbrantes orangotangos catando piolhos dependurados nas costas de seus semelhantes, tudo só para mim na santa paz, paz até para sentir-me desgraçada no limbo pós-etílico. Sempre fui uma ótima companhia para mim mesma, por isso nunca cheguei perto de alcançar a compreensão desta necessidade neurótica das pessoas de ter que viver em sociedade com milhões de amigos histéricos e sorridentes porque eu, ao contrário, sempre enxerguei a multidão como um incômodo, semelhante ao incômodo produzido por um vento impiedoso de inverno que dói nos ossos e queima a pele.
É irritante como estão sempre a sofrer pela solidão, choramingando pelos cantos, citando frases profundas que nem são suas, já que são incapazes de pensar algo original por conta própria porque são como animais adestrados e seguem se desdobrando, se matando e se anulando para agradar todo mundo porque acham que todo mundo tem que agradar e ser bacana o tempo todo, bajulando incansavelmente os outros idiotas presunçosos para ganhar uns tapinhas nas costas de aprovação, enfim, serei concisa: não passam de um bando de carentes, desesperados para serem aceitos a qualquer custo. E cá estou eu, a enlouquecer por esta multidão imbecil.
Depois de pensar, pensar e pensar, resolvi que já não queria mais estudar, nem falar dos meus devaneios na África, não queria mais nada porque já havia tomado a decisão de escrever meu livro que teria esta única página, a da dedicatória. Esbocei com uma grafia de primário no bloquinho minúsculo o seguinte: "Dedico este livro ao meu cérebro, o único responsável por este feito, já que o resto de vocês sempre fez questão de desmerecer a única coisa que faço razoavelmente bem. Aliás, desejo imensamente que todos se fodam de cima a baixo de modo que fiquem arrombados pelo resto de suas vidas mesquinhas". Pousei o lápis em cima do bloco. Visceral, disse em meia voz, meio vulgar porém visceral... em outras palavras, bastante adequado, acrescentei sorrindo meu risinho cínico e malicioso habitual.
Eu devo ser mais do que anti-social, a verdade é que talvez eu seja mesmo uma retardada ou uma estúpida ou uma melancólica idiota ou tudo isto. Mas tudo isto atualmente, para ser honesta, não faz a menor diferença e é o tipo de rótulo em que faço questão de cagar em cima.

Um comentário:

ela disse...

eu lembro da sua cachaçada, hein... HAHAHAHA!!! Não acho que você seja menos espirituosa que algumas pessoas; e eu também escolheria a África. Seu cérebro é incrível, Sarah, já te disse isso, e, de fato, ele merece uma dedicatória no seu livro que com certeza não teria uma única página. Você não é anti-social, apenas já conhece exatamente bem o jeitinho das pessoas com mentalidade limitada que nos cercam, e te dou razão pra continuar assim. Mas ainda existem pessoas pra arrancar suspiros da gente, por serem perfeitamente diferentes do que estamos habituadas. E, bom, posso dizer que você, por exemplo, é uma dessas pessoas pra mim! Quando achei que não encontraria uma amizade em que eu pudesse gargalhar, confidenciar, repensar, divagar, e poder ser eu mesma, você apareceu DO NADA! hahahaha! Maravilhoso seu texto, como sempre!