terça-feira, 8 de novembro de 2011

eu seria pior se não fosse pela falta de dinheiro

Raramente consigo escrever qualquer linha sobre esperança, acho, inclusive, que a falta da última-que-morre remete a minha infância conturbada, aos meus insanos pais professores, extremamente inteligentes, com comportamentos de adolescentes tardios e que em meio às cachaçadas, em meio às tantas loucuras, apesar de tudo, conseguiram enfiar alguns princípios dentro da minha cachola como se eu fosse uma aluna deles 24 horas por dia, 7 dias por semana, durante os sofríveis 365 dias do ano. Quiçá eu tenha entendido tudo errado ou quiçá eu tenha nascido mesmo com o talento natural para ser uma garota ruim. A segunda hipótese faz mais sentido porque eu realmente sentia tesão, mesmo que não tivesse a menor idéia de como era me sentir excitada, ao observar as expressões de espanto do entorno e confesso que aquelas caras de horror e reprovação eram como o que são fodas muitíssimo bem tiradas para mim hodiernamente.
Eu passei minha adolescência aqui no bairro e, mesmo estando bem ao lado, cresci relativamente sozinha, aprendendo sobre a sexualidade, mesmo que a minha sexualidade na época tenha se resumido a ter doado, alguns anos mais tarde, o meu cabaço a quem me dediquei por anos a fio e que atendia por namorado, aprendendo sobre a vida, sobre o martírio, sobre o fardo da consiência de mundo. E, conforme meus pais chapavam o coco por aí à fora, eu agia de forma equivalente na rua escura de fundos do estacionamento do shopping enchendo a cara de vinhos vagabundos, bem escondida, aprendendo a fumar e a beber aos 13 anos, embalando discursos metafísicos e infantis sobre política, literatura, futebol, religião, boemia e toda a sorte de assuntos que dominam a mente dos marginalizados precoces, assistindo, embriagada, as promessas feitas durante a infância se asfastarem velozmente de mim, mas como a bêbada que sempre fui, só me dei conta disto outro dia.
Para comprar birita e cigarro era muito simples há 11 anos atrás porque havia uma legislação flexível e zero de fiscalização, então, ciente da facilidade, eu chegava ao balcão do boteco da Tia R pedindo de cara uma cerveja Miller e um cigarro goudang de menta, ela perguntava se eu tinha 18 anos e eu respondia que sim, mesmo com aquela voz de Sandy durante a adolescência, sem peitos e bunda, tão reta quanto uma táboa, e a Tia R, por pena, me vendia seus produtos. Eu disse por pena? Por pena uma ova! Fazia isto porque queria ganhar o seu sustento e o do seu filho viciado, mesmo que fosse às custas de uma freguesa estragada prematuramente como eu, mesmo sabendo que estava alimentando a possibilidade de criar outro monstro como ela fizera com a sua própria prole. Ela não dava a mínima, mas pelo menos não era um não se importar como o dos meus pais, que viviam rasgados d'água e só sabiam reclamar e brigar e encher meu saco sem terem a menor idéia do que acontecia comigo, a Tia R, ao contrário, simplesmente não se importava e isto era um sentimento genuíno porque até mesmo a circunstância consciente de não se importar lhe era desimportante.
Depois de adqurirmos o que queríamos, minha fiel escudeira e eu, íamos para uma rua discreta em frente ao McDonald's e toda bendita vez em que ela fumava, sentia a vontade lacinante de cagar. Era incrível! Apenas três tragadas eram o suficiente para que o cocô lhe apontasse no rabo, então corríamos desesperadas para o banheiro da lanchonete para que ela pudesse se aliviar. Depois de algum tempo, a mentira deslavada para a dona do boteco, os goles, as tragadas e a vontade de botar para fora se tornaram um ritual e eu nem me irritava mais com isso, pelo contrário, fumava e mandava a cerveja para dentro rapidamente a fim de que tudo ocorresse dentro do cronograma que nos era habitual, afinal, alguma coisa próxima de familiaridade nós havíamos de ter, nem que fosse o trajeto percorrido às pressas até a privada. A verdade é que corríamos ébrias ao banheiro com a veemência de que tínhamos vontade de correr até os nossos pais e dizer-lhes que eram um bando de egoístas filhos da puta.
Aos 14 anos, minha mãe descobriu que eu fumava maconha. Deste dia em diante, minha vida se tornou um inferno. Não, o inferno é um hotel de 5 estrelas se comparado ao que eu passei durante uns bons 5 ou 6 anos, sendo consumida pela eterna suspeita, pelo dinheiro regulado, pelas fofoquinhas familiares, pelas fofoquinhas dos conhecidos, pelo fato de tudo o que me ocorria ser atribuído à pobre e inofensiva marijuana, até o desgraçado do namorado era culpado. Para minha sorte outro primo meu acabou sendo descoberto, muito tempo depois, como um inveterado maconheiro e eu vivi um período de paz e negligência por parte de todos os parentes e tive, portanto, toda a tranquilidade para seguir com a minha filosofia de vida rock & roll. O problema foi que, à certa altura, descobri que sentar o nariz era muito mais divertido e que, embora mais caro, me propiciava horas maiores com a minha maior paixão: o álcool. Daí quanto mais eu cheirava, mais eu bebia e quanto mais eu bebia, mais eu cheirava e mais alheia aos fatos ficava. Tornou-se um ciclo vicioso. O álcool, o pó, meus pais desregulados e eu. Era uma relação doentia.
Nunca tive nenhum exemplo do que poderia ser uma família perto de tangir o conceito de normalidade. O trivial, para mim, sempre fora o beber até fazer um chafariz com os orifícios do corpo, o fumar até o pulmão berrar por misericórdia e o me drogar até entrar em desepero pela taquidardia achando que ia infartar, muito embora meus pais sempre tenham sido categoricamente contra os entorpecentes ilícitos, de modo que passei quase 10 anos da minha vida sob ameaças de internação, ameaças de não comprarem meus cigarros, ameaças de não me darem dinheiro para sair, ameaças de exames sanguíneos, ameaças de contarem para meus futuros cônjuges sobre a pessoa deprimentemente dependente que sou e foram sempre todas estas ameaças estúpidas que não surtiam efeito e que nunca se concretizaram porque eu me antecipava abrindo a boca para deixar bem claro para as pessoas sobre com quem elas estavam se metendo, veja bem, eu sou uma roubada, meu querido, rache fora enquanto é tempo.
Ao passo em que meus pais me ameaçavam e não cumpriam, eu prometia e não cumpria também. De qualquer forma, as ameaças acabaram por ser para nós um punhado promessas que se esmigalhavam inevitalmente e que não possuíam valor algum, mas que eram refeitas sempre que as particularidades dos fatos exigissem que fizéssemos, renovando, assim, nossa fé em nós mesmos para que a quebrássemos posteriormente de uma maneira monstruosa, bestificada e desrespeitosa dando contorno àquela cachorrada repugnante em que vivíamos.
O fato é que, apesar de não me drogar com a diligência de outrora e de não beber com a sede de outrora, ao conversar com uma amiga sobre minhas fraquezas, cheguei a dizer que isto ocorrera por nojo, não que não enxergasse isto naqueles tempos de calmaria e relativo otimismo, mas ao repensar e reaver o conjunto da obra neste momento, atribuo a minha constante sobriedade à falta de dinheiro. Carecer de capital às vezes pode culminar na moderação dos maus hábitos e é por isto que eu constumo dizer que Deus não dá asas às cobras e, este bicho peçonhento que escreve, se não tivesse que se rastejar pela vida, já teria sucumbido às inclinações vertiginosas para o mal. Acho que devo dar mil glórias à classe média ou ao governo de Minas Gerais pelos contra-cheques miseráveis designados aos professores tais quais meus pais.
Apesar de aqui em casa sempre termos sido um bando de loucos, nos amamos demais, ainda que seja de uma maneira retorcida aos olhos comuns, mas foram justamente as adversidades que agiram como um ímã e acabaram por nos aproximar magneticamente, tornando-nos algo como que fôssemos cúmplices dos nossos crimes com a vida ou gêmeos das tristeza que sentíamos no espírito em relação a esse mundo medonho. Ao atingir a maturidade, eu percebi que havia sido muito injusta principalmente com minha mãe, já que eu sempre fui mais apegada ao meu pai, e exigi coisas que nunca deveria ter exigido porque não passava de uma adolescente retardada que se achava a criatura mais inteligente do planeta, enquanto ela se matava para me proporcionar a melhor educação possível, para que eu pudesse ler os melhores livros, assistir os melhores filmes, frequentar os melhores lugares e que não houve rejeição nenhuma por parte dela, aliás, por parte de ambos, a rejeição foi apenas minha porque nunca tive habilidade suficiente para enxergar beleza no politicamente correto. O fato é que, sendo bêbados ou não, adultos com síndrome de Peter Pan ou não, meus pais e eu integramos o grupo seleto da família, que, mais cedo ou mais tarde, atinge um grau de amizade equivalente à amizade que se tem com alguém que não é parente. Se alguma coisa dera errado na minha vida, mea culpa e de ninguém mais. Meus pais têm, portanto, a sua parcela de responsabilidade eximida para sempre porque eu, irremediavelmente, os amo, malucos, intelectuais, politizados, amorosos e inconstantes como são. Sou quem fiz, sou a única que deve responder pelos meus atos.

4 comentários:

ela disse...

A cada novo post, você se surpreende, Sarah! Este é o mais verdadeiro, e que mais te definiu em poucas palavras. Gostei DEMAIS! Parabéns pelas belas palavras, pela sinceridade, por não ter medo de falar o que sente e por não se preocupar com o que os outros podem pensar de você. Mas apesar do nosso pouco tempo de convívio e de amizade, continuo achando que seus vícios foram, em essência, ocorridos como válvula de escape pra suportar o que você passava em casa ou mesmo pra, talvez, se sentir notada e chamar a atenção dos seus pais (positivamente, claro). "Pai, mãe, parem com isso, olha eu aqui!" E continuo achando que o fato de tudo isso ter diminuído atualmente, não é só porque o dinheiro é curto e contado ou só porque você se sentiu fraca, mas porque no fundo você sabe que as coisas vão muito mais além e também porque, no fundo, você não quer repetir algumas mesmas histórias e ser reflexo de outras. Você CAGA pro que qualquer um pensa de você, e isso é maravilhoso; mas, no fundo, você se importa com o que os seus pais pensam de você, os únicos. Os únicos que realmente não se importam com seus defeitos e vão estar ao seu lado mesmo sob ameaças que não vão acontecer, bem como você não os abandonou nos momentos em que você quis fugir do mundo. Eu pude ter a oportunidade de ver como é bonita a preocupação e o carinho mútuo entre você e seus pais, mesmo diante de todos os "poréns". No fim, é você e eles. Sempre! :)

sarah disse...

para ser sincera, eu me comovi mais lendo sua crítica do q ao escrever, pq redigir isto foi sofrível pra mim, como sempre é qdo costumo desvendar minha vida através de palavras.
MUITO OBRIGADA pelo comentário, do fundo do coração.

Anônimo disse...

Complexo tudo isso! Mas acho q o pior mesmo não é nem amaconha, é quando a coisa degringola por outro lado, o lado do crack.
Isso sim que é foda, vc sofre com fofoquinhas de todos os cantos, por qualquer motivo! Você é uma puta, vadia e a toa. Ai foda com tudo. Tb sou filha de professores e sei como a cobrança familiar tb é pesada...

ela disse...

Não há de quê, xará! ;) Eu sei me expressar bem em palavras (apesar de às vezes me perder nelas), mas pessoalmente eu tenho mais dificuldade de demonstrar meus sentimentos, vontades e crenças. Acho que quanto mais gosto e admiro uma pessoa, menos consigo demonstrar pessoalmente. Acho que por isso que falo mais aqui do que quando nos encontramos, hahaha. Mas quero que saiba que gostei MUITO do novo final que você deu ao seu post. Achei que caiu muito melhor. Gosto muito de você e da sua família, e acho linda a relação de vocês três! Quanto mais dificuldades a gente passa, mais os laços de fortalecem! :)