terça-feira, 1 de outubro de 2013

clóvis

Eu não me lembrava mais de quando o Clóvis havia tomado aquela parte minha, a boa e a ruim, tudo junto numa espécie de lavagem que se dá aos miseráveis, sem separar nada, devorando bucho e lombo com igualdade de apetite e paladar. Era como se do meu todo houvesse dois sócios majoritários de um quinhão que agora competia bem mais a ele do que a mim, não por obrigação dele ou negligência minha, mas porque, de alguma forma, me parecia que aquele cara fosse mais talentoso no que concernem essas funções artesanais, tão sutis, tão necessárias de perícia, e que eu tinha a incompetência inata pra realizar, admito. Aliás, sempre fui grosseira e estabanada demais pra certas delicadezas que a vida exige.
Certo dia, ele chegou aqui em casa antes do trabalho, umas sete horas da manhã, fazia frio e o dia era de um branco homogêneo e enfadonho, desses que encerram qualquer esperança que se possa ter. Eu vestia uma blusa de linha furadinha, sem nada por baixo, deixando à mostra qualquer coisa dos meus peitos que a gravidade ainda não havia cuidado de arrastar pra baixo, mas não foi proposital. Ele achou sexy. Sorri constrangida. Ele riu do meu constrangimento. O fato é que ele acharia sexy até se eu estivesse usando uma calcinha enorme e uma camiseta furada no sovaco e manchada de café. Por isso, a segurança que o tesão inabalável dele incutia em mim vinha na forma do reflexo desse tesão, equivalente em intensidade, força e de direção oposta, e era bem ali, no encontro dos dois vetores sexuais, que batíamos de frente como os animais que éramos e a porra toda passava a fazer sentido.
Tínhamos a fome diária um do outro como necessidade básica de sobrevivência, talvez fosse por isso que não conseguíamos ir pra lados diferentes, não tenho certeza. Talvez, além da fome extrema, houvesse um amor extremo. Ou talvez, ainda, tivéssemos juntado a fome com a vontade de comer, unindo nossas naturezas voluptuosas ao amor que tínhamos, alcançando esse raro êxito que se busca incansável e implacavelmente, remexendo em todo o lixo do mundo pra encontrar algo que preste, algo pelo qual realmente valha a pena tirar o corpo exausto da cama nas manhãs como aquela em que ele apareceu aqui, mas também não sei. Só sei que quando sozinhos nós não passávamos de dois universos caóticos e solitários, entorpecidos e imersos na lisergia alcoólica que amenizava a nossa existência decadente, ao passo em que juntos, tolerar o mundo era uma tarefa menos dolorosa, ainda que o fizéssemos entorpecidos e imersos na mesma lisergia alcoólica. Era mais fácil porque não estávamos mais sozinhos, tínhamos um ao outro pra suportar o horror da vida e, eventualmente, conseguir encontrar qualquer beleza assustadora nela. 
Eu estava sentada não completamente de costas pro Clóvis, que estava só de cueca esticado na cama, olhando-o com ternura enquanto falávamos sobre amenidades, fumando nossos cigarros e rindo de algumas idiotices. Ele me puxou pra perto e ficamos alguns minutos em silêncio, saboreando a tranquilidade doce e aparentemente inabalável daquele momento, como se não houvesse nada acontecendo lá fora.
Era bom, e eu gostava de pensar que aquilo é que era algo próximo à paz, não de espírito, mas de um sossego inatingível, plácido e nupcial, que, por senso comum, as pessoas são obrigadas a respeitar. A habilidade que tivemos pra atingir aquela perfeição nos conferiu o direito de termos um fim sublime que nos eternizaria: uma bomba acertando a cidade bem no meio, liquidando-nos de modo notável antes que a rotina e a convivência assassina o fizessem por conta própria, com a sua falta de estilo habitual, impedindo que elas transformassem a nossa ilustre tragédia em mais uma repetição senil de existências pouco imaginativas. Aquele era o momento ideal pra evitar que nos assemelhássemos às vulgaridades de novela, e tinha que ser feito logo, porque era maravilhoso demais pra que a feiúra da realidade manchasse-o com sua mesquinhez.
Quando ele levantou e se pôs a vestir, fui tomada por um tremendo sentimento de pavor porque eu ficaria a sós e de frente com o espanto do meu cotidiano outra vez. Clóvis foi embora. E me ocorreu que a verdade é que eu não era unicamente minha e nem o Clóvis exclusivamente dele. Sem querer, havíamos nos roubado um do outro, e eu já não podia dizer onde começava um e onde começava o outro, mesmo sabendo onde era um e onde era o outro. Mas no final das contas, foi como se disséssemos "Ei, toma! Esse lote é seu, cuide dele como você cuida do próprio cu" e virássemos as costas sem dar qualquer informação sobre o terreno. Eu tinha pena do Clóvis por estar ligado tão intimamente a mim, mas ele me sorria com a cara toda e, além do mais, me achava sexy, é claro.

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