sexta-feira, 15 de junho de 2012

aquela sujeita devia ter algum problema mental

E devia mesmo. Até o ponto em que se auto-promovia com seus modos púdicos e castos, com a sua ingenuidade forçada, estava tudo bem. A coisa se complicou mesmo quando ela resolveu que tinha que excursionar nas minúcias das questões sociais, argumentando que violência não é a resposta logo após ter afirmado ser admiradora do Che Guevara desde quando assistiu "Diários de motocicleta", o cubano mais famoso do mundo, ela disse. Ele era argentino, tá? Mostrou-se contra o aborto e a favor da pena de morte, inclusive. Entendi, conte-me mais sobre seu lado humanista, estimulei. Idéia pela qual vim a me arrepender só mais tarde.
É que a vida é tudo para mim, ela proferiu. Sério? Não me diga, respondi em um tom reticente, e como você valoriza a vida em geral? Ah, eu faço sempre o bem sem olhar a quem... fez uma pausa para o suspense, terminando com um "mas quando posso né?", e sorriu como se tivesse tido a sacada mais genial do planeta. Pode crer, para fazer o bem tem que haver disponibilidade na agenda, certo? Ela franziu as sobrancelhas com um ar confuso e falou que claro, tem dias que tô muito apressada, fazendo as minhas coisas e nem presto muita atenção. Então não é sempre que você faz o bem, garota. Ela gargalhou feito uma retardada como se eu tivesse tido a sacada mais genial do planeta.
Simplesmente me é inconcebível esta necessidade atual de ter que ser sempre bom, não no sentido de ser altruísta e solícito gratuitamente sem esperar gratidão ou retorno, mas no sentido de querer ser bom somente para se tornar melhor do que o outro aos olhos de terceiros. Há duas possibilidades, uma assume a forma de encarceramento, tal qual uma algema que se mostra travestida de virtude e que, no entanto, não tem outra função senão a de nos abreviar individualmente a cada dia. A segunda se enquadra em uma espécie de ritual do acasalamento moderninho, porque hoje em dia esta hipocrisia se tornou o novo feromônio para a cópula. Ostentações sociais contemporâneas para quem busca parceiros sexuais.
Olhando-a daquele jeito, me senti péssima pelos deboches porque ela parecia se esforçar para mostrar que realmente estava no caminho, que queria se importar com alguma coisa e, quiçá, estivesse apenas perdida em meio às doutrinas sociais impostas, vindas de todas as vertentes, como flechas de merda atravessando a sua frágil cabecinha.
Entendo que as pessoas estão cada vez mais confusas com a multiplicidade de papéis que nos é exigida, com a velocidade com que tudo nos atinge sem que saibamos de onde vêm os ponta-pés. Entendo também que muitas delas já não conseguem escolher o seu caminho, se correm para o misticismo ou ateísmo, partidarismo ou apartidarismo, pró-ambientalismo ou progressismo, indiferença ou revolução e que as informações são propagadas sem que tenham tempo para filtrá-las e digeri-las. Divagando tudo isto em segundos, eu quis acreditar que este era o caso pois agora eu a compreendia e era complacente.
No momento em que estava perto de me transfigurar no melhor de mim, a doida maluca tem um repente e solta que a cada seis meses doava o próprio sangue, aumentando o tom de voz a fim de que todos no entorno pudessem ouvi-la. Espero que ela não tente doar o sangue de mais ninguém, pensei. A desgraçada não parava mais! Dizia amar e ter fé em Jesus Cristo e que estava interessadíssima na Kabbalah porque era muito revelador. Quem estava ali dirá ter ouvido a Madre Teresa de Calcutá com mal de Alzheimer.
Não tinha jeito, a bendita era mesmo uma dessas bem comuns que costumam falar qualquer bosta mística que lêem na internet como se tivessem achado o cálice sagrado, a filosofia suprema de vida, a verdade absoluta e o segredo da existência. Não entendia a porra toda e mesclava toda a porra, numa mistura de arrepiar. À medida que a pobre ia se endireitando na cadeira, exaltando-se e discursando cada vez mais alto, eu ia me afundando até quase ir para debaixo da mesa.
Se ela não era a favor de aborto e curtia pena de morte, se amava Jesus e Kabbalah ao mesmo tempo, se não sabia discernir nada de merda nenhuma, que pelo menos fosse tomar no cu pra lá com dignidade, tendo em mente que talvez seja melhor mesmo se limitar a maquiagem, bolsa, cabelo, sapato e noitadas ao invés de bancar a santa às vésperas da canonização. Não tenho a menor paciência para nego que, vez ou outra, empolga e sai para fazer passeios fora do eterno comercial de margarina em que está aprisionado, apenas para experimentar aventuras da pesada no mundo real.
Senti vontade de morrer. Senti vontade de enfiar meu copo na goela dela antes que eu morresse. Sempre acabo decepcionada pela minha fraqueza que culmina em lapsos de empatia e esperança, servindo tão somente para me desencantar com a humanidade cada vez mais.

3 comentários:

Pão com òcio. disse...

gostei do drama no final do texto. Tadinha da Maria Teresa, vou mencionada pra descrever uma doida qualquer. Quem bom que não tenho vida social. Quem bom que não tenho muito ouvidos.
Imagino que escuta muito bem.

Enfim sempre descrevendo de forma peculiar e avessa aos "irmãos".

Pão com òcio. disse...

foi*

Pão com òcio. disse...

Uma merda não pode corrigir quando se escreve o comentario totalmente errado.