terça-feira, 26 de junho de 2012

o momento que antecede a pancada

(Ilustração: Claudim Melo)


Não tinha certeza se havia sido o tédio ou o desencanto que a conduzira naquela empreitada, mas lembrou que se sentiu repentinamente disposta a chutar o pau da barraca no conforto do lar. Teve um lampejo perigoso e recorrente que sempre antecede estes momentos: uma lembrança vertiginosa e tão boa quanto uma trepada. Deu uma golada generosa na cerveja e se virou para alcançar a bolsa, remexeu seu conteúdo à baixa luz até que encontrou um pequeno recipiente cilíndrico, admirando-o e o segurando firmemente contra a iluminação fornecida pelo monitor. Tomou outro gole, acendeu um cigarro e continuou a flertar com o potinho, cheia da convicção que nunca tivera sobre nada na vida, aquela era sua única certeza pois era tangível. Soprou a fumaça e, como de costume, regurgitou um pouco de ar que emendou em um arroto quente. Abriu uma de suas gavetas bagunçadas e começou a vasculhá-la com certa apreensão enquanto bebericava e tragava nervosamente.
Seria apenas por diversão, afinal quem quer a porra de um vício? Deste pensamento aparentemente encorajador, acresceu-lhe uma sensação de desconforto que percorreu toda a extensão da espinha, seguida de uma idéia crescente e devastadora, porém hesitante, de foda-se o mundo que abarcou sobre seus ombros curvados. Da gaveta finalmente conseguiu extrair um cartão, então se levantou e esticou os braços para aliviar aquela pequena tensão que se acumulara nos seus membros.
Enquanto andava de lá pra cá em busca de uma superfície apropriada, lembrou-se de verificar as persianas e até mudou a música, porque a viagem seria catastrófica caso Radiohead continuasse ecoando pelo cômodo acizentado em nicotina. Pensou que queria mesmo era conviver com depravados convictos e com desgenerados. Queria conviver com aquelas vadias sujas e vulgares, com viciados que venderiam até mãe, com idiotas superficiais e suas conversas rasas, com pessoas inseguras, com mulheres rancorosas e oportunistas e com homens impotentes. Queria lidar com tudo aquilo que é vil e que é assim sem remorso. Mas espere, ela já convivia com todo o lixo da humanidade que se refugiava covardemente em carcaças de santos profetas e cordeiros. Sentiu-se como a idiota que dorme com o inimigo.
Encostou a cabeça na porta para se certificar de que todos dormiam. Não podia ser pega com o nariz na botija de modo algum. Pensando bem, era a adrenalina do segredo que a guiara por anos a fio na prática do tiro esportivo e, talvez, fosse a única coisa que a mantivera na linha e longe de problemas maiores com as drogas. Gostava de usar quase tudo e quase tudo misturado, principalmente maconha, cocaína e LSD, sempre acompanhadas de qualquer bebida alcoólica. A birita é o que ela chamava de cereja do bolo. Funcionava como o agente catalisador da explosão quando combinado com tudo que ela costumava meter para dentro do corpo sem perícia. Naquela noite, a cerveja seria a sua nitroglicerina.
Era uma mulher incapaz de suprir as expectativas alheias e sabia disso. Sabia também que era franca o suficiente para admiti-lo e dizê-lo a quem quisesse ouvir. Eu não valho nada assim como todas as outras pessoas, disse baixinho para si. Sentiu, depois desta pobre reflexão, todo o peso da injustiça do mundo nas suas costas pois as cobranças que sofria eram desproporcionais ao que lhe era oferecido. Por quê caralhos diziam-lhe sempre sobre a diligência de se abaixar as expectativas quando o que exigiam dela era altíssimo? Particularmente, criá-las nunca constituiu o problema principal, mas sim o momento em que pediram que eu depositasse as minhas fichas, prosseguiu seu monólogo como quem tivera sua força exaurida e estivesse esgotada demais até para falar. Isto não passa de uma visão simplista das circunstâncias e só favorece quem é sempre alguém pela metade. É a cultura cômoda de nego mais ou menos. Mais ou menos honesto, mais ou menos sincero, mais ou menos fiel, mais ou menos escrupuloso, mais ou menos verdadeiro e, se houvesse meios, seriam mais ou menos gays e mais ou menos grávidas. Arre, estou-me nas tintas com estas metades!, resmungou.
Nunca tivera muita paciência para qualquer coisa e aquela espera pela oportunidade ideal já estava lhe dando no saco. Mas ao perceber que o som que advinha do cômodo ao lado era apenas um ronco cansado e abafado pelo ruído massificante da televisão, sentiu-se segura o suficiente para reduzir ainda mais a sua expectativa de vida naquela madrugada fria e enfastiante. Da carteira retirou uma nota velha de cinco reais e que, aliás, parecia já ter sido usada para a mesma finalidade por outras pessoas que nunca conheceria. Pegou uma capa de CD e preparou duas carreiras paralelas com aquele pó amarelo. Encaixou o canudo no nariz e inspirou. Ahhh, emitiu com prazer, fungou diversas vezes e repetiu o gesto com a narina oposta.